segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Por que não vemos o "lado positivo" do outro?


Walter S. Barbosa[1]
A natureza humana é dual. Provavelmente, a mais objetiva evidência disso é a relação  entre o masculino e o feminino, que são forças ligadas ao princípio criativo universal, estando presentes dentro de cada ser humano. Atuando no aspecto da sexualidade (além de outros), esse princípio é responsável pela geração de corpos físicos destinados a abrigar e expandir consciências no mundo dos relacionamentos. Tais relacionamentos, por sua vez, são vivenciados sob o jugo de outra dualidade: o prazer e a dor, causando muitos conflitos. Desses conflitos deve nascer a Luz.

No nível estritamente material a história se repete: a polaridade inerente à estrutura do átomo gera relações eletromagnéticas que levam à formação de elementos e substâncias – sob a direção das Hierarquias Criadoras –, sustentando o aspecto material de todo corpo. De diferentes maneiras isso deve acontecer em todos os planos da manifestação – seguindo a máxima de Hermes Trismegistro "Assim como é em cima, é embaixo" – pois todos são atômicos, materiais, com diferentes graus de densidade. Atuando no plano mental essa realidade nos escraviza, mas também nos liberta.

Contrapondo-se à dualidade como aspecto governante da forma – incluindo os corpos ligados à personalidade –, encontra-se o Princípio da Unidade inerente à Consciência ou Espírito por trás da forma. “Corporificado” em Deus como origem de tudo, esse princípio pode ser resumido na palavra Amor, que é Sua manifestação. O Amor é a “cola” universal. Por meio dele manifestamos Deus em tudo que fazemos. E quanto mais o fazemos, menos a dualidade age destrutivamente nas relações, perdendo seu principal impulso: a reatividade (tentáculo do passado no presente).

Desde a estrutura do átomo, não há corpo sem consciência e nem consciência sem corpo, variando numa escala infinita o tamanho ou grandeza dessas consciências. Na matéria inerente aos planos físico, emocional e mental, essas consciências denominam-se "essência elemental". Segundo Besant & Leadbeater, “Essa matéria se amolda muito facilmente à influência do pensamento humano. Todo impulso que brote do corpo mental ou do corpo astral, cria imediatamente uma espécie de veículo temporário, que se reveste dessa matéria vitalizada”[2]. A essência elemental é semi-inteligente, e as formas que ela anima são denominadas simplesmente “elementais”.

Vivendo em nossos corpos – mas pertencendo ao arco descendente da evolução – essas forças influenciam nosso comportamento na medida em que nos entregamos a elas, manifestando inveja, ira, rancor, preguiça etc., justificando as palavras do apóstolo Paulo: "Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse faço". De que maneira vemos os outros por trás desse espesso véu? Da mesma forma que enxergamos a nós mesmos.

Em virtude das relações eletromagnéticas inerentes ao átomo e também à consciência elemental do plano mental, a criação da forma naquele mundo é instantânea, conforme a natureza da energia manipulada pela consciência a partir dos pensamentos. Como entidades autoconscientes – mas ainda ignorantes de nossos poderes – fazemos essa manipulação automaticamente, criando formas mentais dotadas de vida, contra os outros e até contra nós mesmos. Toda criação surge primeiro no plano mental, para depois se tornar física. Somos co-criadores do Universo.

Conforme o grau de nossas consciências, se revela o grau de nossos julgamentos em relação às pessoas. O que está determinando esse grau? Naturalmente, a dualidade, pois a consciência daquele que julga é permeada pela forma que a contém. Conforme a qualidade do corpo, em termos de energia, é a qualidade do pensamento, do sentimento e, consequentemente, da ação.

Quanto mais purificado nosso corpo (exaltando satva, a qualidade da harmonia na matéria), menor sua dualidade e, portanto, menos tendencioso e reativo é o julgamento, conseguindo sobrepor à nossa visão negativa aquilo que o outro tem de bom, até o ponto em que o julgamento se dissolve na pura compassividade.

Alguém poderá dizer: "Não são as essas suas palavras apenas um fruto do intelecto?" De fato, bem longe estamos de vivenciá-las em nosso dia a dia. É simplesmente a aspiração que se derrama por nossos dedos, algo que compartilhamos de coração para coração, como acontece a todo aspirante. A vida dos homens santos, porém, é um exemplo disso. Estando seu corpo e consciência unificados numa pura manifestação de amor, veem a realidade em toda parte – como diz o sábio Ramana Maharishi – e assim jamais apontam o dedo para alguém, jamais constrangem.

Ignorantes do mundo interno de cada um – com suas misérias e conflitos (o que só a compaixão pode captar) – e fazendo vista grossa às nossas próprias misérias, é de fato a arrogância que nos eleva à condição do julgador. Como reverter esse processo, diminuindo o hábito dos julgamentos – que anda de mãos dadas com a reatividade – trazendo harmonia às relações? Essa questão pode ser examinada, com muito proveito, pelo ângulo das energias, onde os aspectos psicológicos ganham a dimensão material.

Preliminarmente, como benefício direto do mundo dos relacionamentos, não há como negar o fato de que um defeito qualquer apontado em nós tem uma grande possibilidade de ser real, atuando por ressonância magnética (identidade vibratória) sobre o outro, gerando sua reação. Ou seja, a reação do outro pode não ser apenas uma projeção de seu próprio defeito, algo que ele vê distorcido em função da cor dos “óculos” mentais.

Então, como podemos distinguir se o defeito é real, ou não? Um indicador seguro quanto a isso é o desconforto gerado em nós pelo julgamento de que formos alvo. Esse desconforto representa a continuação da cadeia da ressonância, mostrando que o defeito é verdadeiro, o que exigirá de nós muita reflexão e trabalho interno, pondo consciência no problema a fim de superá-lo. Caso contrário, poderemos olhar aquilo com indiferença e mesmo compreensão, extinguindo-se aí a cadeia da reatividade.

“Deixar de fazer o mal, fazer o bem e purificar a mente: essa é a lição de todos aqueles que despertaram”, ensina Gautama Buda. No extremo da dualidade, o egoísmo e a maldade predominam, nos tornando joguetes da vida elemental. Nessa situação, buscamos prazer unicamente para nós, sem nos importar com a dor que causamos aos outros, na verdade sentindo prazer com essa dor. O mundo mental provavelmente está cheio de formas-pensamento com essa finalidade.

Momentos assim, de maldade “explícita”, retornam ao nosso dia a dia mesmo depois que passamos ao 2° nível – começando a praticar o bem – incluindo as justificativas com que mascaramos nossos atos. É imensa a variedade desses comportamentos, indo desde os ataques físicos até a maledicência embalada em palavras doces, não esquecendo as situações em que – inclusive na sombra da omissão – gozamos silenciosamente nossa cota de prazer com o mal em jogo. Apesar do silêncio, a forma-pensamento nos delataria aos olhos de um clarividente, eventualmente descarregando sua carga negativa sobre nós próprios, seus criadores.

Por essa razão, na busca da purificação mental está a grande chave para a mudança. Segundo Mehta, "Somente os puros veem a pureza"[3].

Diante da impureza já existente em nosso campo mental, o trabalho de purificação é uma imposição da vontade espiritual já desenvolvida em nós, resumindo nosso grau de consciência neste momento. Por meio dela nos autodeterminamos a busca das melhores energias – e, portanto, dos melhores pensamentos – substituindo as que hoje caracterizam nosso comportamento dentro do jogo da dualidade, da reatividade. Sem essa autodeterminação não há como escapar à atração magnética do passado.

Quando julgamos alguém, o que fazemos? Ressaltamos seu lado pior (que pode até nem existir, como projeção nossa), por meio de nosso lado pior. Caso contrário, ressaltaríamos seu "lado positivo", porque seria esse que estaríamos enxergando (vemos conforme as cores de nossa mente). Pensar mal de alguém – ainda que em silêncio – é energia que nos limita e também limita o outro, agregando em nossas naturezas formas-pensamento de intriga e hostilidade, que se realimentam sempre.

A partir disso, buscar ver o lado melhor do outro (em essência, somos luz) é sem dúvida o caminho mais verdadeiro e mais inteligente, pois reforça seu aspecto positivo por ressonância com nosso pensamento e ainda substitui, em nosso campo mental, a energia aprisionante da maledicência pela energia do bem, da compaixão, do Amor.

Procurar ver o "lado bom" do outro, reforçando essa qualidade nele, é uma forma extraordinária de fazer o bem, pois funciona sem oposição alguma, podendo ser acionada a qualquer hora e de qualquer lugar do planeta. Vemos por aí de que maneira o conflito dos relacionamentos (quase inevitável porque neste mundo somos egos operando com egos) pode gerar os estados de transcendência.

Convém ressaltar que as energias são neutras: nem boas, nem más. Além disso, no plano da Unidade – ou do Espírito – apesar de ainda existir matéria, a dualidade não mais predomina. Nossa opção pela “energia do bem” neste momento significa apenas a neutralização daquilo que de impuro existe em nós – obscurecendo a energia do Amor, que é nossa natureza divina, original. Retirada essa impureza, a Luz certamente prevalecerá.


[1] Membro da Sociedade Teosófica e Diretor da Universidade Livre para a Consciência (UNICONSPORTAL)
[2] BESANT, Annie & LEADBEATER, C.W. “Formas de Pensamento”, Editora Pensamento.
[3] MEHTA, Rohit. O Chamado dos Upanixades, Editora Teosófica.