Walter S. Barbosa[1]
Alguém pode perguntar: “O
que vem antes, a aceitação ou a entrega?” Podemos indagar de volta: “Aceito
porque entrego, ou entrego porque aceito?”.
Inicialmente, temos a impressão
de que a entrega vem antes. Só aceitamos porque entregamos. Como a entrega
surge? Será que é uma escolha mental? Certamente não é. Não podemos escolher
não ter medo. A eliminação do medo surge em nossa natureza na medida em que as razões do medo são eliminadas. Podemos
escolher, no entanto, examinar essas razões, ir ao fundamento do medo.
Não é preciso examinar
muito para saber que a razão do medo está na ignorância do desconhecido. É essa
ignorância que nos torna apegados ao conhecido. Por sua vez, essa é a origem
das impregnações da mente. Se pudermos nos convencer da absoluta falta de razão
para o medo, ele desaparecerá.
Não podemos escolher não
ter medo, mas podemos escolher a eliminação da ignorância. Aquilo que é
conhecido nos dá, naturalmente, maiores condições de controle, de redução da
insegurança, de diminuição do medo. Para que as razões do medo sejam
eliminadas, o desconhecido deve se tornar conhecido, o que significa reduzir nossa
ignorância quanto àquele assunto em particular.
Entretanto, essa escolha
não é tão simples. Não se trata apenas de um processo mental. Todo
comportamento é fruto de uma impregnação material – ou energética – em nossa
vida. Independentemente das causas, uma crença qualquer determinou o início
dessa impregnação, convertendo essa crença num hábito – ou pensamento-hábito,
como diz Mehta. Hábito é energia congelada em determinado comportamento. Para
mudar isso há necessidade de esforço, de determinação.
Só estamos dispostos a
fazer esforços numa direção contrária aos nossos hábitos quando nos convencemos
o quanto esse hábito é prejudicial à nossa vida. Convencidos, por exemplo, de
que determinado vício está nos matando, não compensando o prazer que nos dá,
então podemos nos esforçar para eliminá-lo. A partir desse momento (que envolve
mudança em nossa crença), percebemos que a segurança propiciada por esse hábito
é ilusória – na verdade, um motivo de insegurança.
Estarmos “convencidos” de
algo significa que examinamos profundamente o objeto em questão e criamos um novo
ponto de vista a seu respeito. Seja qual for o motivo desse exame, o fato é que
a motivação foi bastante forte para gerar a alteração na crença.
Pode ser, no entanto, que
a simples conversa com um amigo ou a leitura de um livro tenha gerado esse click, o que significa então que o campo
já estava preparado para a mudança.
Até o canto de um pássaro – interrompendo o fluxo incessante dos nossos
pensamentos – pode ser a gota que faça transbordar o copo, abrindo caminho à
força interior para mudar o comportamento.
Sim, porque todo estímulo
final para a mudança vem de dentro. Aquilo que queremos atingir de melhor em
nossa vida já está lá dentro. O que
impede a maior atuação dessa força são nossas impregnações mentais, os
pensamentos-hábitos, tudo que acumulamos no sentido de proteger nosso prazer,
de aumentar nossa segurança.
As impregnações
mentais são a maior causa de nosso medo, de nossa incapacidade de caminhar na
direção do desconhecido, gerando resistência aos fatos da vida e também à
possibilidade de estar no Agora. Quando deixamos de resistir, nos entregamos,
aceitamos, nos rendemos, deixando de criar oposição aos fatos e passando a ver
as coisas “como elas são”.
Então, é possível que a
aceitação e a entrega sejam uma coisa só, que aconteçam simultaneamente. Também
pode ser que a aceitação – como algo representativo do aspecto feminino, como
diz Pierrakos – chegue antes, levando à quebra da resistência que tem uma
característica masculina, como fortaleza do ego. A quebra dessa resistência levaria
à entrega.
Examinamos o aspecto da aceitação do ponto de vista
dos fatos, daquilo que a vida coloca diante de nós, podendo gerar resistência
ou aceitação. Outro ponto relevante está na questão de aspectos internos,
como limitações da personalidade, manifestando-se externamente como ira,
maledicência, uso de drogas e outros tantos defeitos. Como fica a aceitação
diante disso?
Caso nos curvemos ao defeito – inclusive defendendo-o,
como acontece algumas vezes – estaríamos aceitando-o como um fato em nossa vida
(e assim tendo condições de superá-lo), ou estaríamos simplesmente caindo na
autoindulgência, levando ao adiamento do esforço para mudar?
A questão da defesa e manutenção dos nossos
comportamentos se explica pela profunda identificação que temos com eles,
mesmo os mais perniciosos. Somos o próprio hábito! Como reconhecer a
necessidade de ação sobre ele se nos tornamos uma coisa só, como “unha e
carne”? Nesse caso, o grau de impureza e dependência é tão profundo que negar o
hábito é negar nossa própria natureza – e isso não faz parte do anseio de
continuidade do ego.
É bem conhecida a frase
de Rogers[2]:
“Quando me aceito como sou, posso então mudar”. Acontece que, ao nos aceitar como
somos, deixamos de resistir a essa condição. Deixar de resistir significa criar
dentro de nós um campo de neutralidade onde a observação pura – sem julgamento –
se torna possível, permitindo então que nos desidentifiquemos
da situação observada.
Tudo que
podemos observar torna-se objeto de consciência, despertando quanto a esse
ponto certo grau de iluminação em nossa vida. No caso de um defeito isso significa reconhecer, a
partir dos olhos internos: “Isto é
ira”, ou “Isto é maledicência”, adquirindo condições reais de pôr um fim naquilo.
Conclui-se daí que a aceitação, como instrumento de consciência, não pode se confundir com autoindulgência, situação esta em que
nos entregamos ao comportamento negligente ou conflitante por uma questão de
conforto ou, mais propriamente, de fraqueza (a frase de Rogers, por sinal, é
muitas vezes tomada nesse sentido). Ao contrário da autoindulgência, a
aceitação tem raízes em um processo de maturidade e grandeza interiores. É uma
entrega não aos poderes do vício, mas sim aos poderes de Deus em nós mesmos,
suplantando as reivindicações e limites do ego.
Unicamente nessa
capacidade de entrega ao Deus Interno encontra-se a alternativa de agir
efetivamente – virando a página da reatividade, criando uma história nova –, ou não agir. É a situação conhecida no Bhagavad-Gita, onde
Krishna – Deus personificado – dirige o carro em que Arjuna combate. Na
verdade, Krishna combate através dele. Só assim podemos atuar sem erro em
nossas lutas diárias, deixando que a sabedoria e o amor viventes em nossa
condição divina se manifestem no mundo.
Há uma situação especial em que o agir se reveste da necessidade de urgência, de atitude enérgica e imediata: quando nosso coração é ferido diretamente pela desorientação ou abuso contra os mais fracos ou indefesos, como desvalidos, idosos e crianças. Então só podemos pedir que a sabedoria do Eterno possa estar acompanhando nossos atos.
Há uma situação especial em que o agir se reveste da necessidade de urgência, de atitude enérgica e imediata: quando nosso coração é ferido diretamente pela desorientação ou abuso contra os mais fracos ou indefesos, como desvalidos, idosos e crianças. Então só podemos pedir que a sabedoria do Eterno possa estar acompanhando nossos atos.
Agir e não agir são
possibilidades da mesma natureza, tendo a entrega por diretriz. Vêm de dentro.
Não agir é o agir negativo, que se recolhe na expectativa dos frutos da reta
ação, deixando que esses frutos se estabeleçam como decorrência do fluxo da
vida, que é sábio por si mesmo. Agindo ou não agindo estaremos de acordo com
esse fluxo, nos tornando ele próprio. Dessa maneira esgota-se também a
sementeira do Karma, habilitando-nos, enfim, para trilhar a Senda.
Um comentário:
Excelente artigo meu querido e amado esposo! O seu artigo nos inspira, e considerando que a evolução é inexorável segundo Annie Besant em sua obra: "A Vida Espiritual", penso que a ação ainda que lenta ou ausente (como no caso da montanha que age na inação, embeleza a paisagem, cumpre sua missão, mesmo na completa quietude de seu estado de montanha), sempre nos empurra para a aceitação e entrega.
Pois, nesse caso aceitação e entrega são inseparáveis, ocorrem simultaneamente, sendo uma quase sinônimo da outra.
Assim, não há porque nos condenar quando não agimos. Se ainda não agimos, talvez seja porque ainda não estamos preparados para a ação. Quando de fato aceitamos, não temos dúvida (como você bem citou no artigo), agimos ou entregamo-nos à ação imediatamente.
Parabéns pela reflexão!!!Bjs.
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