terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Agir ou não agir: possibilidades da Aceitação no dia a dia (I)

Walter S. Barbosa[1]
O que é “aceitar”? A primeira ideia que nos surge a respeito é a da submissão. Aí dizemos “não”, porque essa proposta agride frontalmente a natureza do ego, a não ser que submeter-se signifique para ele justamente a possibilidade de sobreviver.

“Agir” ou “não agir” é um dos nossos dilemas vivenciais. Por ação ou omissão intencional podemos estar sempre acionando a roda do Karma, pois o ator inevitavelmente é o ego. A partir dos pensamentos (também fonte de Karma) ele se encontra ativo no mundo, às vezes deixando marcas destruidoras em sua passagem.

A tendência do ego é dominar, competir, sobrepujar. Para ele, então, submeter-se é a morte, o que vem a ser um dos maiores desafios na questão do relacionamento, onde, em lugar de uma efetiva relação – com interatividade em mão dupla –, o que mais se apresenta é o confronto de egos em permanente busca de supremacia.

No entanto, pelo conforto da vida em sociedade, submeter-se em troca de vantagens é, até certo ponto, um caminho natural na existência humana, buscando amparo mútuo. Várias gradações podem existir nessa submissão. Um exemplo é a submissão do empregado ao seu patrão, tendo a hierarquia um papel fundamental na estrutura produtiva.

Contudo, na subordinação necessária do empregado, o aspecto funcional não pode ignorar o moral nem o fraterno. Se essa regra não for observada, haverá a possibilidade de humilhação ou desrespeito ao empregado, numa subordinação além do necessário. Caso o empregado aceite tal condição – dispondo de meios para sair dela –, algo de distorcido poderá haver nesse caráter, além da possibilidade patológica.

Esse exemplo singelo pode ser adaptado a outras situações de submissão externa, como é próprio do jogo de interesses do mundo material. Podemos lembrar nesse sentido o que ocorre na vida de um casal. Para manter esse elo – constantemente ameaçado pelo confronto de egos –, os parceiros se esforçam numa submissão mútua, em troca de carinho, segurança e conforto, cada um cedendo aqui ou ali e entrando com a parte que lhe cabe na manutenção desse acordo. Não havendo abuso, o que de imoral pode existir nisso?

Entretanto, alguém poderá objetar: “Mas será que existe amor nessa relação, onde há submissão em troca de alguma coisa?” A pergunta é apropriada. A ideia de submissão pode, inclusive, trazer embutida a ideia de ressentimento. Onde há ressentimento, pode haver amor? Além disso, qual seria a legitimidade desse amor, de certa forma baseado em escambo?

“Se o amor tem motivo, então não é amor algum”, diz Mehta[2]. De fato, a natureza última do amor não tem condições. Amamos porque amamos, e ponto final.  Contudo, até chegarmos a esse ponto há um longo caminho a ser percorrido, um longo aprendizado.

Todas as virtudes supremas – incluindo a do amor incondicional – já se encontram em germe dentro de nós. Por que meios essa semente brotará? Essa é justamente a função – ou alquimia – da vida material, onde tudo que existe de negativo traz o positivo como possibilidade real. No universo nada surge por acaso. A condição potencial sempre está por trás de tudo, como parte da presença divina, sustentando a inexorabilidade da evolução.

Então, falamos aqui de uma submissão amorosa, sim, onde o sentimento de completude em relação ao outro – pela união das polaridades masculina e feminina, com seus respectivos poderes – nos faz sentir submissos pela gratidão e admiração envolvidas. Esse anseio de união das polaridades é também o prenúncio de uma totalidade que intuímos – como algo já existente dentro de nós – e que por isso freneticamente buscamos. Dessa forma, sob império do próprio desejo, vai ocorrendo a superação inicial do isolamento, da arrogância do ego.

Da submissão que vem de fora – imposta pelas circunstâncias – podemos passar a outro tipo: aquela que estabelecemos para nós. Nesse caso, a grande questão é: quem se submete a quem?

Trata-se de uma questão difícil, considerando que somos, em geral, identificados com o corpo físico, tomando-o como nossa própria natureza. Contudo, de vez em quando usamos a expressão “meu corpo” nos referindo a ele. Então, quem possui um corpo? Se a resposta for “Eu possuo um corpo”, podemos ainda perguntar: Quem é esse eu que possui um corpo? Onde ele se encontra?

Podemos imaginar que o eu – que não sabemos onde se encontra – deve ter poder sobre o corpo. Mas, pela prática, sabemos que esse corpo tem vontade e necessidades próprias. Além do corpo, temos também os desejos, que frequentemente nos levam até para onde não queremos, nos arrependendo depois amargamente.

E quanto à mente, temos algum poder sobre ela, ou frequentemente é ela que nos domina? É bem patente – na experiência de cada um de nós – a presença dos pensamentos obsessivos, que mais dominadores se tornam quanto mais tentamos dominá-los. Então, se considerarmos o “eu” como um núcleo de consciência, de vontade, seríamos obrigados a admitir a existência de muitos “eus” dentro de nós?

Para não nos alongarmos muito nessa questão, podemos admitir que há no mínimo dois “eus” em permanente luta no microuniverso chamado “ser humano”. A psicologia freudiana aborda essa dualidade como id (centro do prazer, base do instinto) e superego (centro da moralidade, busca da perfeição), tendo a figura do ego entre esses extremos, na condição de elemento equilibrante.

Para a filosofia esotérica esses dois eus são a personalidade (eu inferior, materialidade) e a individualidade (eu superior, espiritualidade). Nessa visão, o eu inferior – reunindo físico, emoção e mente inferior – corresponde ao ego da psicologia que, pondo freios no id, busca se adaptar às condições reais do mundo, em busca de continuidade. Nesse domínio do ego sobre o id, essencialmente egoísta, não há, porém, qualquer coisa de elevado. É apenas uma estratégia no sentido de continuar existindo, a fim de desfrutar o prazer que está em sua base instintiva, garantindo-se com o patrimônio mundano: bens, prestígio, domínio sobre os outros.

Então, o que significa a aceitação para o ego? Numa palavra, descontinuidade, perda de domínio. É por essa razão que imediatamente dizemos “não” quando a palavra aceitação é colocada à nossa frente. Estando profundamente identificados com o ego – nosso eu material, objetivo – é por meio dele que manifestamos nossa condição mental básica, que se chama “reatividade”. Essa manifestação – rápida e agressiva como o próprio instinto – no fundo estaria expressando a natureza do id, que não pensa duas vezes na defesa de seu território.

O que significa essa questão, na perspectiva do Yoga? É o que veremos na continuação deste interessante assunto.


[1] Membro da Sociedade Teosófica e Presidente da Associação Educacional Besant (UNICONSPORTAL).
[2] MEHTA, Rohit. “Yoga, a Arte da Integração”, Editora Teosófica, Brasília-DF.

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