terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Agir ou não agir: possibilidades da Aceitação no dia a dia (II)

Walter S. Barbosa[1]
De que maneira a reatividade interfere no processo da aceitação e em nossa possibilidade real de agir no dia a dia?

Diz o sábio Patanjali, na versão dos Yogassutras comentada por Mehta[2]: “Yoga é a dissolução de todos os centros de reação da mente”. Ou seja, a missão do Yoga termina – levando o homem à condição de sábio, de um ser iluminado – quando os centros de reatividade se extinguem! Com isso também chega ao fim nossa jornada no reino humano.

O problema da reatividade é tão arraigado em nossa natureza que se confunde com o próprio pensamento. Conforme diz Mehta: “Quando dizemos que estamos pensando, na verdade estamos envolvidos em um processo de reação”. Isso se explica porque “Com o passar do tempo, esses centros de reação tornam-se mais e mais fortes. Forma-se dentro da mente uma cadeia de reações. Essas tendências reativas tornam-se nossos hábitos”. Isso dá origem ao “pensamento-hábito”, não permitindo uma atuação renovada nas situações do dia a dia.

Então, como podemos agir de fato – e não apenas reagir – se tudo que fazemos está contaminado pela natureza reativa dos pensamentos? Podemos agir sem pensar? Como a aceitação se relaciona com isso?

Agir sem pensar é algo extraordinário que acontece quando estamos no Agora. Todos nós podemos ter vivido essa condição em algum momento de nossas vidas, quando o pensamento deixa de atuar, ofuscado pela necessidade da atenção plena como nas situações de risco do alpinista ou do estado de sentimento absoluto, como o vivenciado pelo amor-paixão. Qual é a principal característica desse momento? A entrega. Nos estágios mais elevados, essa entrega é o estado do coração puro, onde as flutuações da mente – impulsionadas pelo desejo não predominam mais, permitindo assim nossa conexão com aquilo que é Eterno, igualmente puro.

A entrega só pode existir se houver aceitação. No amor-paixão aceitamos a outra pessoa como ela é (seus defeitos, então, podem ser até virtudes), pelo que essa experiência representa para nós naquele momento. O contrário da aceitação é a resistência. É lógico que, se resistirmos a uma pessoa, jamais nos entregaremos a ela.

Segundo Pierrakos[3], a aceitação tem uma natureza feminina, enquanto a ação é própria do aspecto masculino. Isso não quer dizer que somente a mulher aceita ou apenas o homem age. Significa apenas que ao manifestar esses comportamentos – de ação ou aceitação – é um daqueles polos que está atuando naquele momento, sabendo-se de antemão que temos os dois dentro de nós. Em termos dessa polarização, podemos dizer também que a mulher está mais aberta à possibilidade de aceitar, enquanto a resistência é bem característica do homem, egoicamente mais centrado.

Num sentido geral, para saber o que é resistência basta perguntar se estamos satisfeitos com nossa situação atual – que representa, sem dúvida, um fato – envolvendo emprego, relacionamentos, propriedades. “Mas aceitar esse fato, se não me traz felicidade, é conformismo”, alguém poderá argumentar. E ainda: “Será que uma pessoa conformada progride, ou sua tendência é acabar na miséria?”

Diz-se que as posses do filósofo Sócrates eram quase nada e ele não era miserável de modo algum. O que é o estado de miséria ou de infelicidade? Se dispor de muito dinheiro representa felicidade, por que muitos se suicidam – até por meio das drogas – nadando em rios de dinheiro? Imaginamos que talvez se sentissem muito miseráveis. O acúmulo de propriedades – sem o mínimo de sabedoria – acaba nos intoxicando, nos isolando do resto do mundo.

Quase não necessitamos de argumentos para admitir que a infelicidade – ou a felicidade – é antes de tudo um estado interior. Nesse interior reside também nossa possibilidade de aceitar, abrindo o coração a caminhos novos. Ao contrário, permanecendo na periferia, o que continuaremos fazendo é resistir, nos tornando cegos para possibilidades alternativas. Essa é claramente uma cegueira mental.

Coração é a palavra-chave para a aceitação. Quando falamos em coração falamos também em sentimento, em compreensão, em intuição. Como esse “coração” se distingue do fanatismo – na dedicação extrema a uma causa – ou do amor-paixão, na dedicação a uma pessoa? Tudo isso por acaso não é sentimento? Sentir sem pensar não seria exatamente a causa de muito desatino? Como isso difere do não-pensar, que é a natureza do estar no Agora?

O não pensar do Agora é um estado de Presença, de totalidade, como assinala Tolle[4]. Nada se pode acrescentar a ele nem tirar dele, porque não é um processo de escolha, de pensamento. Isto só é possível pelas artes do coração (não se trata do órgão físico) que, segundo Maharshi[5], é o ponto da consciência no ser humano.

Evidentemente, fanatismo e amor-paixão nada têm a ver com totalidade. Ao contrário – centrados na adoração de seu objeto – representam exclusão de tudo mais. Em ambos os casos há sentimento e pode haver entrega, mas ela está baseada em “motivo”, em expectativa de recompensa. Então, é uma entrega voltada para os propósitos do ego.

O sentimento de fato tem gradações, de acordo com seu grau de pureza. Na escala em que se mistura aos pensamentos, o sentimento depende deles para se expressar e o resultado é necessariamente impuro, baseado em reatividade. Quando o indivíduo diz “não pensei” para justificar um desatino, ele de fato pensou – mas sob o impulso do sentimento mais baixo, onde predomina a grosseria, a irracionalidade.

Lembramos que o pensamento é veículo de manifestação do ego. Isso não quer dizer que ele seja mau. Como fruto da mente, sua natureza é movimento, e movimento é vida. No mundo do ego, porém, esse movimento está impregnado de apegos, de memória psicológica, e isso gera estagnação, aprisionamento de energias. Liberado dessa cadeia – pela purificação da mente – o pensamento deixa de ter as “flutuações” que o caracterizam, abrindo caminho à plenitude da consciência. Esse é o objetivo do Yoga.

Em virtude da impregnação de apegos, o pensamento é fonte de reatividade, de medo, e, portanto, é um empecilho à entrega. Entretanto, é óbvio que não podemos dizer, de repente, “Vou parar de pensar, a fim de realizar a entrega”. Antes disso vem o trabalho junto aos apegos, junto às impregnações da mente. Só depois que esse vazio é iniciado, liberando nossos pés, podemos dar o salto da entrega. Esse é um salto sem rede de proteção, e por isso gera medo. Em razão disso, é para poucos.

A dificuldade na entrega é também dificuldade na aceitação. Alguém pode perguntar: “O que vem antes, a aceitação ou a entrega?” Podemos indagar de volta: “Aceito porque entrego, ou entrego porque aceito?”. Examinaremos isso na continuidade deste tema.


[1] Membro da Sociedade Teosófica e Diretor da Associação Educacional Besant (UNICONSPORTAL).
[2] MEHTA, Rohit. “Yoga, a Arte da Integração”, Editora Teosófica, Brasília-DF.
[3] PIERRAKOS, Eva. “Criando União”, Editora
[4] TOLLE, Eckhart. “O Poder do Agora”, Editora Sextante, São Paulo-SP.
[5] MAHARSHI, Ramana.

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