Walter S. Barbosa[1]
O que é “aceitar”? A
primeira ideia que nos surge a respeito é a da submissão. Aí dizemos “não”,
porque essa proposta agride frontalmente a natureza do ego, a não ser que submeter-se signifique para ele justamente a
possibilidade de sobreviver.
“Agir” ou “não agir” é um dos nossos dilemas
vivenciais. Por ação ou omissão intencional podemos estar sempre acionando a
roda do Karma, pois o ator inevitavelmente é o ego. A partir dos pensamentos
(também fonte de Karma) ele se encontra ativo no mundo, às vezes deixando
marcas destruidoras em sua passagem.
A tendência do ego é dominar, competir, sobrepujar. Para
ele, então, submeter-se é a morte, o que vem a ser um dos maiores desafios na
questão do relacionamento, onde, em lugar de uma efetiva relação – com
interatividade em mão dupla –, o que mais se apresenta é o confronto de egos em permanente busca de supremacia.
No entanto, pelo conforto
da vida em sociedade, submeter-se em troca de vantagens é, até certo ponto, um
caminho natural na existência humana, buscando amparo mútuo. Várias gradações
podem existir nessa submissão. Um exemplo é a submissão do empregado ao seu patrão,
tendo a hierarquia um papel fundamental na estrutura produtiva.
Contudo, na subordinação necessária
do empregado, o aspecto funcional não pode ignorar o moral nem o fraterno. Se essa regra não
for observada, haverá a possibilidade de humilhação ou desrespeito ao empregado,
numa subordinação além do necessário. Caso o empregado aceite tal condição – dispondo
de meios para sair dela –, algo de distorcido poderá haver nesse caráter, além
da possibilidade patológica.
Esse exemplo singelo pode
ser adaptado a outras situações de submissão externa, como é próprio do jogo de
interesses do mundo material. Podemos lembrar nesse sentido o que ocorre na
vida de um casal. Para manter esse elo – constantemente ameaçado pelo confronto
de egos –, os parceiros se esforçam numa submissão mútua, em troca de carinho, segurança
e conforto, cada um cedendo aqui ou ali e entrando com a parte que lhe cabe na
manutenção desse acordo. Não havendo abuso, o que de imoral pode existir nisso?
Entretanto, alguém poderá
objetar: “Mas será que existe amor nessa relação, onde há submissão em troca de
alguma coisa?” A pergunta é apropriada. A ideia de submissão pode, inclusive,
trazer embutida a ideia de ressentimento. Onde há ressentimento, pode haver
amor? Além disso, qual seria a legitimidade desse amor, de certa forma baseado
em escambo?
“Se o amor tem motivo,
então não é amor algum”, diz Mehta[2].
De fato, a natureza última do amor não tem condições. Amamos porque amamos, e
ponto final. Contudo, até chegarmos a
esse ponto há um longo caminho a ser percorrido, um longo aprendizado.
Todas as virtudes supremas
– incluindo a do amor incondicional – já se encontram em germe dentro de nós.
Por que meios essa semente brotará? Essa é justamente a função – ou alquimia – da
vida material, onde tudo que existe de negativo traz o positivo como
possibilidade real. No universo nada surge por acaso. A condição potencial
sempre está por trás de tudo, como parte da presença divina, sustentando a
inexorabilidade da evolução.
Então, falamos aqui de
uma submissão amorosa, sim, onde o sentimento de completude em relação ao outro
– pela união das polaridades masculina e feminina, com seus respectivos poderes
– nos faz sentir submissos pela gratidão e admiração envolvidas. Esse anseio de
união das polaridades é também o prenúncio de uma totalidade que intuímos –
como algo já existente dentro de nós – e que por isso freneticamente buscamos.
Dessa forma, sob império do próprio desejo, vai ocorrendo a superação inicial do
isolamento, da arrogância do ego.
Da submissão que vem de
fora – imposta pelas circunstâncias – podemos passar a outro tipo: aquela que
estabelecemos para nós. Nesse caso, a grande questão é: quem se submete a quem?
Trata-se de uma questão
difícil, considerando que somos, em geral, identificados com o corpo físico,
tomando-o como nossa própria natureza. Contudo, de vez em quando usamos a
expressão “meu corpo” nos referindo a ele. Então, quem possui um corpo? Se a
resposta for “Eu possuo um corpo”, podemos ainda perguntar: Quem é esse eu que
possui um corpo? Onde ele se encontra?
Podemos imaginar que o eu
– que não sabemos onde se encontra – deve ter poder sobre o corpo. Mas, pela
prática, sabemos que esse corpo tem vontade e necessidades próprias. Além do
corpo, temos também os desejos, que frequentemente nos levam até para onde não
queremos, nos arrependendo depois amargamente.
E quanto à mente, temos
algum poder sobre ela, ou frequentemente é ela que nos domina? É bem patente – na
experiência de cada um de nós – a presença dos pensamentos obsessivos, que mais
dominadores se tornam quanto mais tentamos dominá-los. Então, se considerarmos
o “eu” como um núcleo de consciência, de vontade, seríamos obrigados a admitir
a existência de muitos “eus” dentro de nós?
Para não nos alongarmos
muito nessa questão, podemos admitir que há no mínimo dois “eus” em permanente
luta no microuniverso chamado “ser humano”. A psicologia freudiana aborda essa
dualidade como id (centro do prazer, base
do instinto) e superego (centro da
moralidade, busca da perfeição), tendo a figura do ego entre esses extremos, na condição de elemento equilibrante.
Para a filosofia
esotérica esses dois eus são a personalidade (eu inferior, materialidade) e a
individualidade (eu superior, espiritualidade). Nessa visão, o eu inferior –
reunindo físico, emoção e mente inferior – corresponde ao ego da psicologia que, pondo freios no id, busca se adaptar às condições reais do mundo, em busca de
continuidade. Nesse domínio do ego
sobre o id, essencialmente egoísta,
não há, porém, qualquer coisa de elevado. É apenas uma estratégia no sentido de
continuar existindo, a fim de desfrutar o prazer que está em sua base
instintiva, garantindo-se com o patrimônio mundano: bens, prestígio, domínio
sobre os outros.
Então, o que significa a
aceitação para o ego? Numa palavra,
descontinuidade, perda de domínio. É por essa razão que imediatamente dizemos
“não” quando a palavra aceitação é colocada à nossa frente. Estando
profundamente identificados com o ego
– nosso eu material, objetivo – é por meio dele que manifestamos nossa condição
mental básica, que se chama “reatividade”. Essa manifestação – rápida e
agressiva como o próprio instinto – no fundo estaria expressando a natureza do id, que não pensa duas vezes na defesa
de seu território.
O que significa essa
questão, na perspectiva do Yoga? É o que veremos na continuação deste
interessante assunto.