segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Desejo-medo: nosso paradoxo essencial?



Walter S. Barbosa[1]
O desejo pode ser considerado o motor do universo, ou seja, aquilo que dá movimento à vida universal. É o próprio fluxo da vida em nosso plano, sustentando o impulso do "vir a ser". Já o medo é aquilo que aprisiona, que congela esse movimento, ocasionando a estagnação, principalmente aquela de natureza patológica.

É comum dizermos que determinada pessoa é acomodada. Por que ela se acomodou? O estudante de astrologia sabe que, para uma pessoa com predomínio do elemento terra em seu mapa, pode haver uma tendência muito grande a se acomodar. Ele só caminha com os pés firmes no chão. Em boa medida, é a virtude da prudência ou estabilidade em construção, algo que temos de aprender com o elemento terra, passando dezenas de vezes pelas experiências da roda zodiacal (onde desenvolveremos também as virtudes geradas pelos elementos ar, fogo e água). 

Por outro lado, se esse anseio de segurança estiver travando a vida dessa pessoa, pode haver algo de patológico nisso, sob o comando do medo. Aí, nem mesmo a ambição provocada pelo desejo fará grandes mudanças. A ambição pode de fato nem existir, gerando o contrário daquilo que a ambição exagerada provoca: inércia, ausência de crescimento material e psicológico, com possíveis graus de dependência daqueles que lhe forem próximos.

O desejo e o medo, como forças antípodas, podem estar no centro de um mal que nos acomete na generalidade da condição humana: a incapacidade de ver as coisas “como elas são”. Apesar de fisiologicamente sadios – não carregando deficiências aparentes –, padecemos dessa cegueira elementar, baseada nas distorções criadas por nossa mente, sob a influência do desejo e/ou do medo. Tais distorções acabam se tornando o fruto – e também alimento – da nossa ignorância. É a miséria nutrindo a si mesma.

De tal cegueira, dois efeitos são distinguíveis em nosso dia a dia: 1) O estado de relativa insanidade que nos acomete, gerando conflitos internos e agredindo nossas relações; 2) O subdesenvolvimento de nosso cérebro, sempre nanico por falta de material novo com que trabalhar. Tudo para ele é rotina – que o desejo não aplaca senão fugazmente, em virtude da fome de sensações novas, que se tornam instantaneamente velhas.

Em geral, consideramos insana a pessoa que se encontra desfocada da realidade. E o que é real para cada um de nós – estritamente –, alimentando nossas crenças e as decisões decorrentes, por mais desastrosas que sejam? Isso depende da interpretação daquilo que vemos, estando essa função relacionada com a mente, conforme nossa bagagem particular. Como tal interpretação fica sendo o próprio significado daquilo que é visto – valendo como a coisa em si – então quem de fato vê é a mente. 

Nosso banco de memórias é nada mais que um banco de interpretações, de conceitos. O que a mente vê depende do que está arquivado nesse banco, sendo suas memórias de dois tipos: a psicológica e a operacional, segundo Mehta[2]. A operacional, objetiva, dá sustentação aos nossos atos triviais de cada dia: no trabalho, na direção de um carro, na preparação do alimento. Sem essa memória teríamos que reaprender tudo diariamente, o que nos tornaria incapacitados para essas atividades. 

Já a memória psicológica – que talvez possa ser chamada “memória de relações” – está conectada ao nosso campo emocional-mental (kama-manas, no sânscrito), que é governado pelos desejos. A subjetividade é a natureza desse campo, alimentado pelas interpretações que formulamos desde nossos primeiros contatos com o mundo, recebendo as impressões de nossos pais enquanto criávamos as nossas (estas, portanto, frutos do meio e de nossos próprios impulsos). Esse foi desde cedo o laboratório do ego, manobrando com os desejos – num jogo de atração e repulsão – sob o jugo do medo e da respectiva insegurança. 

Dentro desse laboratório, o senso de propriedade – ou de possuir e ser possuído – tem um significado especial. É o meio de diminuir a insegurança. Assim, desde logo nos sentimos atraídos por acumular tudo que possa significar segurança, continuidade, e a repelir tudo que represente o contrário. Essa, por sua vez, é a origem do apego, desejando e acumulando não apenas coisas, mas também afetos, pessoas – algo que não está parado, que tem seu próprio movimento, seus próprios desejos! Pode-se imaginar fonte maior de conflito, de insanidade?

Ao expressarmos um pensamento, ainda que diante de um fato novo, o registro emoção-mente conecta-se de maneira instantânea com a impressão passada da mesma natureza (tem a rapidez do raio, pelas conexões bioelétricas envolvidas) e o fato novo envelhece em seguida. Assim, praticamente nada consegue mudar esses registros, o que – além de afetar nosso avanço consciencial – resulta no embotamento do cérebro e de nossas possibilidades criativas.

Para os relacionamentos, a tragédia desse envelhecimento perpétuo, desse embotamento da criatividade – abrangendo tudo que tocamos por meio dos registros defasados da mente – é a impossibilidade de renová-los, de manter o frescor do primeiro encontro, quando o senso de propriedade espreitava, mas ainda não havia se instalado. O germe do amor, que poderia se desenvolver a partir dai, provavelmente não passará desse botão, com tendência para minguar e morrer. 

É possível que a infidelidade em nossas relações – pulando de galho em galho – tenha muito a ver com esse estado de coisas, com essa incapacidade criativa, buscando uma sensação nova enquanto sufocamos o medo de perder (sufocar, entretanto, não é superar). 

Onde há medo a realidade não pode ser vista, a ilusão predomina. A conexão desejo-medo, então, é o grande impedimento à percepção da realidade, gerando também obstáculos à expansão – ou desdobramento – da consciência. Onde há medo a consciência não se “des-envolve”. Tal consciência é um minúsculo botão ou germe dentro de nós, hiperconcentrado[3]. Tudo se encontra nele em potencial, como acontece em uma semente.

Mas uma semente necessita de ambiente próprio para germinar, recebendo a umidade e os nutrientes da terra. A água, ao fluir, carrega os nutrientes (assim como a emoção carrega em nós os pensamentos e os atos que irão concretizá-los). Quando germina, a semente de fato revela ou desdobra seu potencial. O medo é a energia paralisante das águas das emoções, tornando-as semelhantes a um pântano. Por essa razão, o amor – como um ato de autoentrega – não se desenvolve aí. Nesse lugar, a própria semente tende a apodrecer. Esses são os potenciais perdidos ao longo de uma vida, alguns talvez para sempre.

Pela conexão desejo-medo, os manuais esotéricos estão sempre recomendando a extinção do desejo. Que mal pode haver, por exemplo, em desejarmos uma fruta? No entanto, se criarmos dependência a respeito, o medo de ficar sem ela poderá se tornar uma obsessão, um flagelo. Quando o desejo se extingue leva consigo o medo (se nada desejamos, porque temer?), possibilitando a expansão da consciência. 

O paradoxo, no entanto, é que o desejo representa movimento em si mesmo, como já mencionamos, e não estagnação. Há muitas pessoas que vivem paralisadas exatamente por falta de ambição, de um desejo mais intenso. Entre os elementos que podem auxiliar a pessoa a sair da estagnação está justamente a existência da diversidade de interesses, como também diz Mehta.

O que existe antes do desejo? Naturalmente, a memória psicológica do apego. Não fosse por essa memória, levando ao anseio de repetir o prazer, como iríamos desejar? Há coisas, no entanto – como a iluminação, ou libertação espiritual – que nunca experienciamos, mas podemos desejar. Esse é outro paradoxo (talvez impulsionado pelo anseio de germinação embutido na semente – que carregamos dentro de nós – trazendo a memória ancestral do “paraíso”). O desejo, nesse caso, está colaborando para sua própria extinção!

Então, por trás da eliminação – ou apaziguamento – do desejo, e consequentemente do medo, está a eliminação do apego. Essa, contudo, é a própria tábua de salvação do ego, que pela manutenção de suas propriedades, busca continuar existindo. Sua identidade só existe nelas. Nem mesmo a constatação diária de que nossos objetos de apego são perecíveis – em sua totalidade – consegue fazer com que nos livremos deles (esse é “o maior milagre do mundo”, conforme um sábio indiano).

Contudo, “não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe” diz um adágio popular. A sabedoria existente nessa frase patenteia a realidade do fluxo da vida: os polos sempre sucedendo a si mesmos, no conhecido jogo da dualidade.

Ao fim desse processo (porque ele tem um fim), esses polos se aproximam tanto, que acabam se devorando mutuamente, sem retorno. É quando o desejo, de tão sutil – ao desejarmos a própria libertação – vence a última barreira do medo e nos projeta para além de toda posse, de todo apego. Aí – paradoxalmente – nos convertemos em donos da própria eternidade, nos confundido com ela. 

Cabe lembrar ainda que o amor – como a liga universal capaz de suplantar o abismo da separatividade – possui o dom de ser o antídoto para aquilo que o envenena. O amor pode engolir o medo e nos levar às delícias da imortalidade, descobrindo que é unicamente pela morte da autoentrega que podemos viver. 

Inicialmente levado a se expressar pelo desejo – buscando essa aproximação que nos fascina, em busca de autocomplementação – o amor-paixão poderá nos levar a desatinos, sob a ganância da posse, conforme a insanidade geral que caracteriza nossas vidas, não conseguindo ver as coisas como elas são.

A vocação do amor, no entanto, é se dilatar sem limites. Se permitirmos que ele aconteça, poderá ser o meio mais rápido de vencermos a insanidade, em cuja raiz repousa a ilusão – e, consequentemente, o medo – de nos sentirmos separados do resto do mundo. 

Ao fim dessa ilusão, levando consigo a energia primária do "vir-a-ser" plantada no útero do desejo, deverá restar apenas o Ser, nossa natureza real, Deus em nós mesmos. Pode-se desejar algo mais? Isso é plenitude, de um jeito inconcebível para nós neste momento – considerando que só conseguimos enxergá-la no amontoado de espuma em nossas mãos –, estranhamente chamando isso de patrimônio, segurança, felicidade. 


[1] Membro da Sociedade Teosófica e Presidente da Associação Educacional Besant (UNICONSPORTAL).
[2] MEHTA, Rohit. “Yoga, a Arte da Integração”, Editora Teosófica, 1995, Brasília-DF.
[3] TAIMNI, I.K. “O Segredo da Autorrealização”, Editora Teosófica, 2009, Brasília-DF.

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