Walter S. Barbosa[1]
O desejo
pode ser considerado o motor do universo, ou seja, aquilo que dá movimento à
vida universal. É o próprio fluxo da vida em nosso plano, sustentando o impulso
do "vir a ser". Já o medo é aquilo que aprisiona, que congela esse
movimento, ocasionando a estagnação, principalmente aquela de natureza
patológica.
É comum
dizermos que determinada pessoa é acomodada. Por que ela se acomodou? O
estudante de astrologia sabe que, para uma pessoa com predomínio do elemento
terra em seu mapa, pode haver uma tendência muito grande a se acomodar. Ele só
caminha com os pés firmes no chão. Em boa medida, é a virtude da prudência ou estabilidade
em construção, algo que temos de aprender com o elemento terra, passando
dezenas de vezes pelas experiências da roda zodiacal (onde desenvolveremos
também as virtudes geradas pelos elementos ar, fogo e água).
Por outro
lado, se esse anseio de segurança estiver travando a vida dessa pessoa, pode
haver algo de patológico nisso, sob o comando do medo. Aí, nem mesmo a ambição
provocada pelo desejo fará grandes mudanças. A ambição pode de fato nem
existir, gerando o contrário daquilo que a ambição exagerada provoca: inércia,
ausência de crescimento material e psicológico, com possíveis graus de
dependência daqueles que lhe forem próximos.
O desejo
e o medo, como forças antípodas, podem estar no centro de um mal que nos
acomete na generalidade da condição humana: a incapacidade de ver as coisas
“como elas são”. Apesar de fisiologicamente sadios – não carregando
deficiências aparentes –, padecemos dessa cegueira elementar, baseada nas
distorções criadas por nossa mente, sob a influência do desejo e/ou do medo.
Tais distorções acabam se tornando o fruto – e também alimento – da nossa
ignorância. É a miséria nutrindo a si mesma.
De tal
cegueira, dois efeitos são distinguíveis em nosso dia a dia: 1) O estado de
relativa insanidade que nos acomete, gerando conflitos internos e agredindo
nossas relações; 2) O subdesenvolvimento de nosso cérebro, sempre nanico por
falta de material novo com que trabalhar. Tudo para ele é rotina – que o desejo
não aplaca senão fugazmente, em virtude da fome de sensações novas, que se
tornam instantaneamente velhas.
Em geral,
consideramos insana a pessoa que se encontra desfocada da realidade. E o que é
real para cada um de nós – estritamente –, alimentando nossas crenças e as
decisões decorrentes, por mais desastrosas que sejam? Isso depende da
interpretação daquilo que vemos, estando essa função relacionada com a mente,
conforme nossa bagagem particular. Como tal interpretação fica sendo o próprio
significado daquilo que é visto – valendo como a coisa em si – então
quem de fato vê é a mente.
Nosso
banco de memórias é nada mais que um banco de interpretações, de conceitos. O
que a mente vê depende do que está arquivado nesse banco, sendo suas memórias
de dois tipos: a psicológica e a operacional, segundo Mehta[2].
A operacional, objetiva, dá sustentação aos nossos atos triviais de cada dia:
no trabalho, na direção de um carro, na preparação do alimento. Sem essa
memória teríamos que reaprender tudo diariamente, o que nos tornaria
incapacitados para essas atividades.
Já a
memória psicológica – que talvez possa ser chamada “memória de relações” – está
conectada ao nosso campo emocional-mental (kama-manas, no sânscrito),
que é governado pelos desejos. A subjetividade é a natureza desse campo,
alimentado pelas interpretações que formulamos desde nossos primeiros contatos
com o mundo, recebendo as impressões de nossos pais enquanto criávamos as
nossas (estas, portanto, frutos do meio e de nossos próprios impulsos). Esse
foi desde cedo o laboratório do ego, manobrando com os desejos – num jogo de
atração e repulsão – sob o jugo do medo e da respectiva insegurança.
Dentro
desse laboratório, o senso de propriedade – ou de possuir e ser possuído – tem
um significado especial. É o meio de diminuir a insegurança. Assim, desde logo
nos sentimos atraídos por acumular tudo que possa significar segurança,
continuidade, e a repelir tudo que represente o contrário. Essa, por sua vez, é
a origem do apego, desejando e acumulando não apenas coisas, mas também afetos,
pessoas – algo que não está parado, que tem seu próprio movimento, seus
próprios desejos! Pode-se imaginar fonte maior de conflito, de insanidade?
Ao expressarmos
um pensamento, ainda que diante de um fato novo, o registro emoção-mente
conecta-se de maneira instantânea com a impressão passada da mesma natureza
(tem a rapidez do raio, pelas conexões bioelétricas envolvidas) e o fato novo
envelhece em seguida. Assim, praticamente nada consegue mudar esses registros,
o que – além de afetar nosso avanço consciencial – resulta no embotamento do
cérebro e de nossas possibilidades criativas.
Para os
relacionamentos, a tragédia desse envelhecimento perpétuo, desse embotamento da
criatividade – abrangendo tudo que tocamos por meio dos registros defasados da
mente – é a impossibilidade de renová-los, de manter o frescor do primeiro
encontro, quando o senso de propriedade espreitava, mas ainda não havia
se instalado. O germe do amor, que poderia se desenvolver a partir dai,
provavelmente não passará desse botão, com tendência para minguar e morrer.
É
possível que a infidelidade em nossas relações – pulando de galho em galho –
tenha muito a ver com esse estado de coisas, com essa incapacidade criativa,
buscando uma sensação nova enquanto sufocamos o medo de perder (sufocar,
entretanto, não é superar).
Onde há
medo a realidade não pode ser vista, a ilusão predomina. A conexão desejo-medo,
então, é o grande impedimento à percepção da realidade, gerando também
obstáculos à expansão – ou desdobramento – da consciência. Onde há medo a
consciência não se “des-envolve”. Tal consciência é um minúsculo botão ou germe
dentro de nós, hiperconcentrado[3].
Tudo se encontra nele em potencial, como acontece em uma semente.
Mas uma
semente necessita de ambiente próprio para germinar, recebendo a umidade e os
nutrientes da terra. A água, ao fluir, carrega os nutrientes (assim como a
emoção carrega em nós os pensamentos e os atos que irão concretizá-los). Quando
germina, a semente de fato revela ou desdobra seu potencial. O medo é a energia
paralisante das águas das emoções, tornando-as semelhantes a um pântano. Por
essa razão, o amor – como um ato de autoentrega – não se desenvolve aí. Nesse
lugar, a própria semente tende a apodrecer. Esses são os potenciais perdidos ao
longo de uma vida, alguns talvez para sempre.
Pela
conexão desejo-medo, os manuais esotéricos estão sempre recomendando a extinção
do desejo. Que mal pode haver, por exemplo, em desejarmos uma fruta? No
entanto, se criarmos dependência a respeito, o medo de ficar sem ela poderá se
tornar uma obsessão, um flagelo. Quando o desejo se extingue leva consigo o
medo (se nada desejamos, porque temer?), possibilitando a expansão da
consciência.
O
paradoxo, no entanto, é que o desejo representa movimento em si mesmo, como já
mencionamos, e não estagnação. Há muitas pessoas que vivem paralisadas
exatamente por falta de ambição, de um desejo mais intenso. Entre os elementos
que podem auxiliar a pessoa a sair da estagnação está justamente a existência
da diversidade de interesses, como também diz Mehta.
O que existe
antes do desejo? Naturalmente, a memória psicológica do apego. Não fosse por
essa memória, levando ao anseio de repetir o prazer, como iríamos desejar? Há
coisas, no entanto – como a iluminação, ou libertação espiritual – que nunca
experienciamos, mas podemos desejar. Esse é outro paradoxo (talvez
impulsionado pelo anseio de germinação embutido na semente – que carregamos
dentro de nós – trazendo a memória ancestral do “paraíso”). O desejo, nesse
caso, está colaborando para sua própria extinção!
Então,
por trás da eliminação – ou apaziguamento – do desejo, e consequentemente do
medo, está a eliminação do apego. Essa, contudo, é a própria tábua de salvação
do ego, que pela manutenção de suas propriedades, busca continuar existindo.
Sua identidade só existe nelas. Nem mesmo a constatação diária de que nossos
objetos de apego são perecíveis – em sua totalidade – consegue fazer com que
nos livremos deles (esse é “o maior milagre do mundo”, conforme um sábio
indiano).
Contudo,
“não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe” diz um adágio popular.
A sabedoria existente nessa frase patenteia a realidade do fluxo da vida: os
polos sempre sucedendo a si mesmos, no conhecido jogo da dualidade.
Ao fim
desse processo (porque ele tem um fim), esses polos se aproximam tanto, que
acabam se devorando mutuamente, sem retorno. É quando o desejo, de tão sutil –
ao desejarmos a própria libertação – vence a última barreira do medo e nos
projeta para além de toda posse, de todo apego. Aí – paradoxalmente – nos convertemos
em donos da própria eternidade, nos confundido com ela.
Cabe
lembrar ainda que o amor – como a liga universal capaz de suplantar o
abismo da separatividade – possui o dom de ser o antídoto para aquilo que o
envenena. O amor pode engolir o medo e nos levar às delícias da imortalidade,
descobrindo que é unicamente pela morte da autoentrega que podemos viver.
Inicialmente
levado a se expressar pelo desejo – buscando essa aproximação que nos fascina,
em busca de autocomplementação – o amor-paixão poderá nos levar a desatinos,
sob a ganância da posse, conforme a insanidade geral que caracteriza nossas
vidas, não conseguindo ver as coisas como elas são.
A vocação
do amor, no entanto, é se dilatar sem limites. Se permitirmos que ele aconteça,
poderá ser o meio mais rápido de vencermos a insanidade, em cuja raiz repousa a
ilusão – e, consequentemente, o medo – de nos sentirmos separados do resto do
mundo.
Ao fim
dessa ilusão, levando consigo a energia primária do "vir-a-ser"
plantada no útero do desejo, deverá restar apenas o Ser, nossa natureza real,
Deus em nós mesmos. Pode-se desejar algo mais? Isso é plenitude, de um jeito
inconcebível para nós neste momento – considerando que só conseguimos
enxergá-la no amontoado de espuma em nossas mãos –, estranhamente chamando isso
de patrimônio, segurança, felicidade.
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