Walter S. Barbosa[1]
“Daí a César o que é de César e a Deus o que é de
Deus”. A frase crística parece tratar Deus e César como se fossem entidades
diferentes. Isso também nos dá a ideia de que a vida material e a vida
espiritual são coisas distintas, podendo ser consideradas como nada tendo em
comum.
Ora, sabemos bem que tratar a vida material como
algo separado da espiritual gera um engano. Em cada ato que realizamos neste
mundo, o agente por trás é o espírito – nossa real natureza – e a consequência
última desse ato é produzir efeitos no nível da consciência, ou seja, no campo
do espírito. Para isso estamos aqui. Então, como separar uma coisa da outra?
“Luz no Caminho”, obra assinada por Mabel Collins[2], fala
sobre o contexto paradoxal da relação entre os aspectos materiais e espirituais
da vida. Apesar de estarem separados, são uma coisa só. Apesar de serem uma
coisa só, estão separados. O paradoxo é uma contradição e a contradição propõe
um desafio de natureza insolúvel para o intelecto, que se baseia no processo
linear, na lógica matemática. Esses são os domínios do mental concreto,
discriminativo, a parte de nossa natureza mental voltada para as necessidades
do corpo, da sobrevivência física.
O rigor dessa concretude – baseada nas exigências
do teto, do agasalho, da comida –, nos torna rudes também no trato com as
pessoas, vendo no rosto de cada uma delas um potencial adversário aos nossos
interesses, à nossa sobrevivência.
O fato é que todas essas pessoas estão vivendo o
mesmo dilema que nós, o mesmo desafio. O resultado é estarmos lutando
indefinidamente uns com os outros. As guerras entre países refletem nossas
guerras com o vizinho e também nossa própria guerra interior: a relação do
espírito com a matéria. Entretanto, ansiamos por paz.
É necessário, então, que resolvamos esse conflito
dialético. Há contradição entre os propósitos do espírito e da matéria? Se há,
então, haveria um erro na concepção do universo, na estrutura fundamental da
vida?
A experiência tem nos mostrado uma das maravilhas
do raciocínio dedutivo: aquele que parte do todo para chegar ao particular. Nesse
sentido, o que significa a relação entre o espírito e a matéria para o dia a
dia? Trata-se de uma relação de aprendizado, de expansão da consciência, o que
significa o espírito expandir seu domínio sobre a matéria, compreendendo suas leis.
Esse domínio, portanto, não ocorre pelo uso da força, como pode nos parecer o
uso da vontade espiritual – que é a ferramenta essencial em nossos processos de
autossuperação.
Em lugar de imposto, esse domínio é antes um
processo de conquista, de gentileza. A matéria (algumas vezes chamada de
“espírito congelado”) tem como finalidade primordial atender aos propósitos da
natureza, gerando corpos para que a consciência – o espírito – possa se
manifestar em todos os recantos do universo (no que reside o mistério da
“Santíssima Trindade”).
Devemos lembrar que, de fato, a consciência já está
presente em todos os cantos. É a natureza íntima da menor partícula de matéria.
Porém, no que tange ao ser humano – predestinado à evolução espiritual diante
dos demais reinos – essa presença ainda é incipiente, à semelhança, do que
acontece na comparação da criança com o adulto, num exemplo bem rudimentar. Para além da condição puramente humana, a expansão da consciência não tem limite.
Para fazer seu trabalho – aquilo que se espera dela
no universo – a matéria é “egoísta” em si mesma. Não faz concessões. Na defesa
desses propósitos, ela possui uma força tremenda, derrotando nossos melhores
esforços quando exercidos num simples confronto, sem sabedoria. Isso, em si, já
significa um paradoxo, pois dá a entender que a matéria é inimiga do espírito –
daí advindo também a noção errônea de uma entidade demoníaca adversária de Deus.
Da mesma forma que age a matéria na defesa de seus
propósitos, agimos nós quando identificados com o corpo físico gerado por ela.
Só vemos esse corpo, só nos preocupamos com sua sobrevivência, em lugar de
lembrar seu significado para o crescimento da consciência, para o desvelamento do
espírito. Ir além desse corpo, entretanto, não é tarefa muito fácil. Trata-se
da autossuperação de que falamos atrás. Isso, literalmente, significa cada um “superar
a si mesmo”. Como posso superar a mim mesmo? Quem vai superar quem?
Ora, o que acontece quando nos identificamos com o
corpo? Automaticamente geramos, no nível do mental concreto, uma entidade denominada
“eu inferior”. Para Ramana Maharshi é o “falso eu”. Na teoria psicanalítica é
chamado de “ego”. O resultado é que esse falso eu acaba se tornando nosso eu verdadeiro,
ocupando o lugar do espírito – ou seja, da clareza de consciência no dia a dia.
Assim, todas as calamidades sociais que o mundo conheceu, em todos os tempos – incluindo
hoje a poluição do planeta e o flagelo da fome sobre bilhões de indivíduos – têm
sua origem nessa nossa identificação enganosa com os domínios de César, que só
pensa em si.
Devemos dar ao corpo o que for necessário para seu
uso como veículo do espírito. Mas, ao confundir esse veículo com seu condutor, acabamos
“colocando o carro adiante dos bois”, invertendo os papéis dessas duas
entidades – espírito e matéria – no processo evolutivo, retardando nosso avanço.
Isso significa aprisionamento nos labirintos da inconsciência, no jogo reativo
provocado pelos hábitos, reivindicando sobrevivência para o corpo, segurança
para o ego. Como desfazer esse engano? Como solucionar esse tremendo paradoxo
de carregar dois “eus” em conflito dentro de nós?
No Bhagavad-Gita – o “Canto do Senhor” – esse confronto
é relatado no dilema de Arjuna, chamado a lutar contra seus próprios parentes
(todos os amores do ego), na defesa de seu clã (o espírito), cujo poder foi
usurpado. Voluntariamente o ego não abrirá mão desse poder. Então, uma luta se
faz necessária, uma batalha se torna iminente. De que maneira combater?
Referindo-se à epopeia do Bhagavad-Gita, “Luz no
Caminho” recomenda: 1) “Mantém-te alheio à batalha que começa e, ainda que
combatas, não sejas o guerreiro; 2) “Procura o guerreiro e deixa-o combater em
ti”; 3) “Recebe as suas ordens para a batalha, e obedece-as”.
Como podemos nos manter alheios à batalha e, ainda
assim, combater? “Ainda que combatas, não sejas o guerreiro”. Isso significa não
nos envolvermos no combate (se nos envolvermos, o ego domina). Ficar alheio é
estar como um observador na situação, sem julgar, deixando que nossa natureza espiritual
(o Eu real) assuma a direção. “Recebe as suas ordens para batalha, e
obedece-as”. Em síntese seria agir buscando as ordens nas fibras mais íntimas
de nosso coração, não nos entregando à reatividade provocada pelo medo, pelo
anseio de sobrevivência.
A única possibilidade de soltar os amores do ego é
colocar à disposição do espírito o potencial de atenção e empenho com que hoje
servimos a matéria, não olvidando, porém, na justa medida, as obrigações que
assumimos, inclusive carmicamente. Caso contrário, essa conta aumenta.
Enquanto
estivermos agarrados ao que é efêmero, não poderemos desfrutar os valores do
que é eterno. E a força de que dispomos para fazer essa mudança é apenas a vontade
espiritual, desenvolvendo-a, paradoxalmente, nos domínios da matéria. Cada
pequena fraqueza vencida em nós é um passo a mais nessa direção. Assim se
explicam todos os paradoxos da existência humana: à própria treva cabe a
incumbência de gestar a luz. O reino do mundo – sabiamente vivido – é a antessala
do reino dos Céus.
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