terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Agir ou não agir: possibilidades da Aceitação no dia a dia (I)

Walter S. Barbosa[1]
O que é “aceitar”? A primeira ideia que nos surge a respeito é a da submissão. Aí dizemos “não”, porque essa proposta agride frontalmente a natureza do ego, a não ser que submeter-se signifique para ele justamente a possibilidade de sobreviver.

“Agir” ou “não agir” é um dos nossos dilemas vivenciais. Por ação ou omissão intencional podemos estar sempre acionando a roda do Karma, pois o ator inevitavelmente é o ego. A partir dos pensamentos (também fonte de Karma) ele se encontra ativo no mundo, às vezes deixando marcas destruidoras em sua passagem.

A tendência do ego é dominar, competir, sobrepujar. Para ele, então, submeter-se é a morte, o que vem a ser um dos maiores desafios na questão do relacionamento, onde, em lugar de uma efetiva relação – com interatividade em mão dupla –, o que mais se apresenta é o confronto de egos em permanente busca de supremacia.

No entanto, pelo conforto da vida em sociedade, submeter-se em troca de vantagens é, até certo ponto, um caminho natural na existência humana, buscando amparo mútuo. Várias gradações podem existir nessa submissão. Um exemplo é a submissão do empregado ao seu patrão, tendo a hierarquia um papel fundamental na estrutura produtiva.

Contudo, na subordinação necessária do empregado, o aspecto funcional não pode ignorar o moral nem o fraterno. Se essa regra não for observada, haverá a possibilidade de humilhação ou desrespeito ao empregado, numa subordinação além do necessário. Caso o empregado aceite tal condição – dispondo de meios para sair dela –, algo de distorcido poderá haver nesse caráter, além da possibilidade patológica.

Esse exemplo singelo pode ser adaptado a outras situações de submissão externa, como é próprio do jogo de interesses do mundo material. Podemos lembrar nesse sentido o que ocorre na vida de um casal. Para manter esse elo – constantemente ameaçado pelo confronto de egos –, os parceiros se esforçam numa submissão mútua, em troca de carinho, segurança e conforto, cada um cedendo aqui ou ali e entrando com a parte que lhe cabe na manutenção desse acordo. Não havendo abuso, o que de imoral pode existir nisso?

Entretanto, alguém poderá objetar: “Mas será que existe amor nessa relação, onde há submissão em troca de alguma coisa?” A pergunta é apropriada. A ideia de submissão pode, inclusive, trazer embutida a ideia de ressentimento. Onde há ressentimento, pode haver amor? Além disso, qual seria a legitimidade desse amor, de certa forma baseado em escambo?

“Se o amor tem motivo, então não é amor algum”, diz Mehta[2]. De fato, a natureza última do amor não tem condições. Amamos porque amamos, e ponto final.  Contudo, até chegarmos a esse ponto há um longo caminho a ser percorrido, um longo aprendizado.

Todas as virtudes supremas – incluindo a do amor incondicional – já se encontram em germe dentro de nós. Por que meios essa semente brotará? Essa é justamente a função – ou alquimia – da vida material, onde tudo que existe de negativo traz o positivo como possibilidade real. No universo nada surge por acaso. A condição potencial sempre está por trás de tudo, como parte da presença divina, sustentando a inexorabilidade da evolução.

Então, falamos aqui de uma submissão amorosa, sim, onde o sentimento de completude em relação ao outro – pela união das polaridades masculina e feminina, com seus respectivos poderes – nos faz sentir submissos pela gratidão e admiração envolvidas. Esse anseio de união das polaridades é também o prenúncio de uma totalidade que intuímos – como algo já existente dentro de nós – e que por isso freneticamente buscamos. Dessa forma, sob império do próprio desejo, vai ocorrendo a superação inicial do isolamento, da arrogância do ego.

Da submissão que vem de fora – imposta pelas circunstâncias – podemos passar a outro tipo: aquela que estabelecemos para nós. Nesse caso, a grande questão é: quem se submete a quem?

Trata-se de uma questão difícil, considerando que somos, em geral, identificados com o corpo físico, tomando-o como nossa própria natureza. Contudo, de vez em quando usamos a expressão “meu corpo” nos referindo a ele. Então, quem possui um corpo? Se a resposta for “Eu possuo um corpo”, podemos ainda perguntar: Quem é esse eu que possui um corpo? Onde ele se encontra?

Podemos imaginar que o eu – que não sabemos onde se encontra – deve ter poder sobre o corpo. Mas, pela prática, sabemos que esse corpo tem vontade e necessidades próprias. Além do corpo, temos também os desejos, que frequentemente nos levam até para onde não queremos, nos arrependendo depois amargamente.

E quanto à mente, temos algum poder sobre ela, ou frequentemente é ela que nos domina? É bem patente – na experiência de cada um de nós – a presença dos pensamentos obsessivos, que mais dominadores se tornam quanto mais tentamos dominá-los. Então, se considerarmos o “eu” como um núcleo de consciência, de vontade, seríamos obrigados a admitir a existência de muitos “eus” dentro de nós?

Para não nos alongarmos muito nessa questão, podemos admitir que há no mínimo dois “eus” em permanente luta no microuniverso chamado “ser humano”. A psicologia freudiana aborda essa dualidade como id (centro do prazer, base do instinto) e superego (centro da moralidade, busca da perfeição), tendo a figura do ego entre esses extremos, na condição de elemento equilibrante.

Para a filosofia esotérica esses dois eus são a personalidade (eu inferior, materialidade) e a individualidade (eu superior, espiritualidade). Nessa visão, o eu inferior – reunindo físico, emoção e mente inferior – corresponde ao ego da psicologia que, pondo freios no id, busca se adaptar às condições reais do mundo, em busca de continuidade. Nesse domínio do ego sobre o id, essencialmente egoísta, não há, porém, qualquer coisa de elevado. É apenas uma estratégia no sentido de continuar existindo, a fim de desfrutar o prazer que está em sua base instintiva, garantindo-se com o patrimônio mundano: bens, prestígio, domínio sobre os outros.

Então, o que significa a aceitação para o ego? Numa palavra, descontinuidade, perda de domínio. É por essa razão que imediatamente dizemos “não” quando a palavra aceitação é colocada à nossa frente. Estando profundamente identificados com o ego – nosso eu material, objetivo – é por meio dele que manifestamos nossa condição mental básica, que se chama “reatividade”. Essa manifestação – rápida e agressiva como o próprio instinto – no fundo estaria expressando a natureza do id, que não pensa duas vezes na defesa de seu território.

O que significa essa questão, na perspectiva do Yoga? É o que veremos na continuação deste interessante assunto.


[1] Membro da Sociedade Teosófica e Presidente da Associação Educacional Besant (UNICONSPORTAL).
[2] MEHTA, Rohit. “Yoga, a Arte da Integração”, Editora Teosófica, Brasília-DF.

Agir ou não agir: possibilidades da Aceitação no dia a dia (II)

Walter S. Barbosa[1]
De que maneira a reatividade interfere no processo da aceitação e em nossa possibilidade real de agir no dia a dia?

Diz o sábio Patanjali, na versão dos Yogassutras comentada por Mehta[2]: “Yoga é a dissolução de todos os centros de reação da mente”. Ou seja, a missão do Yoga termina – levando o homem à condição de sábio, de um ser iluminado – quando os centros de reatividade se extinguem! Com isso também chega ao fim nossa jornada no reino humano.

O problema da reatividade é tão arraigado em nossa natureza que se confunde com o próprio pensamento. Conforme diz Mehta: “Quando dizemos que estamos pensando, na verdade estamos envolvidos em um processo de reação”. Isso se explica porque “Com o passar do tempo, esses centros de reação tornam-se mais e mais fortes. Forma-se dentro da mente uma cadeia de reações. Essas tendências reativas tornam-se nossos hábitos”. Isso dá origem ao “pensamento-hábito”, não permitindo uma atuação renovada nas situações do dia a dia.

Então, como podemos agir de fato – e não apenas reagir – se tudo que fazemos está contaminado pela natureza reativa dos pensamentos? Podemos agir sem pensar? Como a aceitação se relaciona com isso?

Agir sem pensar é algo extraordinário que acontece quando estamos no Agora. Todos nós podemos ter vivido essa condição em algum momento de nossas vidas, quando o pensamento deixa de atuar, ofuscado pela necessidade da atenção plena como nas situações de risco do alpinista ou do estado de sentimento absoluto, como o vivenciado pelo amor-paixão. Qual é a principal característica desse momento? A entrega. Nos estágios mais elevados, essa entrega é o estado do coração puro, onde as flutuações da mente – impulsionadas pelo desejo não predominam mais, permitindo assim nossa conexão com aquilo que é Eterno, igualmente puro.

A entrega só pode existir se houver aceitação. No amor-paixão aceitamos a outra pessoa como ela é (seus defeitos, então, podem ser até virtudes), pelo que essa experiência representa para nós naquele momento. O contrário da aceitação é a resistência. É lógico que, se resistirmos a uma pessoa, jamais nos entregaremos a ela.

Segundo Pierrakos[3], a aceitação tem uma natureza feminina, enquanto a ação é própria do aspecto masculino. Isso não quer dizer que somente a mulher aceita ou apenas o homem age. Significa apenas que ao manifestar esses comportamentos – de ação ou aceitação – é um daqueles polos que está atuando naquele momento, sabendo-se de antemão que temos os dois dentro de nós. Em termos dessa polarização, podemos dizer também que a mulher está mais aberta à possibilidade de aceitar, enquanto a resistência é bem característica do homem, egoicamente mais centrado.

Num sentido geral, para saber o que é resistência basta perguntar se estamos satisfeitos com nossa situação atual – que representa, sem dúvida, um fato – envolvendo emprego, relacionamentos, propriedades. “Mas aceitar esse fato, se não me traz felicidade, é conformismo”, alguém poderá argumentar. E ainda: “Será que uma pessoa conformada progride, ou sua tendência é acabar na miséria?”

Diz-se que as posses do filósofo Sócrates eram quase nada e ele não era miserável de modo algum. O que é o estado de miséria ou de infelicidade? Se dispor de muito dinheiro representa felicidade, por que muitos se suicidam – até por meio das drogas – nadando em rios de dinheiro? Imaginamos que talvez se sentissem muito miseráveis. O acúmulo de propriedades – sem o mínimo de sabedoria – acaba nos intoxicando, nos isolando do resto do mundo.

Quase não necessitamos de argumentos para admitir que a infelicidade – ou a felicidade – é antes de tudo um estado interior. Nesse interior reside também nossa possibilidade de aceitar, abrindo o coração a caminhos novos. Ao contrário, permanecendo na periferia, o que continuaremos fazendo é resistir, nos tornando cegos para possibilidades alternativas. Essa é claramente uma cegueira mental.

Coração é a palavra-chave para a aceitação. Quando falamos em coração falamos também em sentimento, em compreensão, em intuição. Como esse “coração” se distingue do fanatismo – na dedicação extrema a uma causa – ou do amor-paixão, na dedicação a uma pessoa? Tudo isso por acaso não é sentimento? Sentir sem pensar não seria exatamente a causa de muito desatino? Como isso difere do não-pensar, que é a natureza do estar no Agora?

O não pensar do Agora é um estado de Presença, de totalidade, como assinala Tolle[4]. Nada se pode acrescentar a ele nem tirar dele, porque não é um processo de escolha, de pensamento. Isto só é possível pelas artes do coração (não se trata do órgão físico) que, segundo Maharshi[5], é o ponto da consciência no ser humano.

Evidentemente, fanatismo e amor-paixão nada têm a ver com totalidade. Ao contrário – centrados na adoração de seu objeto – representam exclusão de tudo mais. Em ambos os casos há sentimento e pode haver entrega, mas ela está baseada em “motivo”, em expectativa de recompensa. Então, é uma entrega voltada para os propósitos do ego.

O sentimento de fato tem gradações, de acordo com seu grau de pureza. Na escala em que se mistura aos pensamentos, o sentimento depende deles para se expressar e o resultado é necessariamente impuro, baseado em reatividade. Quando o indivíduo diz “não pensei” para justificar um desatino, ele de fato pensou – mas sob o impulso do sentimento mais baixo, onde predomina a grosseria, a irracionalidade.

Lembramos que o pensamento é veículo de manifestação do ego. Isso não quer dizer que ele seja mau. Como fruto da mente, sua natureza é movimento, e movimento é vida. No mundo do ego, porém, esse movimento está impregnado de apegos, de memória psicológica, e isso gera estagnação, aprisionamento de energias. Liberado dessa cadeia – pela purificação da mente – o pensamento deixa de ter as “flutuações” que o caracterizam, abrindo caminho à plenitude da consciência. Esse é o objetivo do Yoga.

Em virtude da impregnação de apegos, o pensamento é fonte de reatividade, de medo, e, portanto, é um empecilho à entrega. Entretanto, é óbvio que não podemos dizer, de repente, “Vou parar de pensar, a fim de realizar a entrega”. Antes disso vem o trabalho junto aos apegos, junto às impregnações da mente. Só depois que esse vazio é iniciado, liberando nossos pés, podemos dar o salto da entrega. Esse é um salto sem rede de proteção, e por isso gera medo. Em razão disso, é para poucos.

A dificuldade na entrega é também dificuldade na aceitação. Alguém pode perguntar: “O que vem antes, a aceitação ou a entrega?” Podemos indagar de volta: “Aceito porque entrego, ou entrego porque aceito?”. Examinaremos isso na continuidade deste tema.


[1] Membro da Sociedade Teosófica e Diretor da Associação Educacional Besant (UNICONSPORTAL).
[2] MEHTA, Rohit. “Yoga, a Arte da Integração”, Editora Teosófica, Brasília-DF.
[3] PIERRAKOS, Eva. “Criando União”, Editora
[4] TOLLE, Eckhart. “O Poder do Agora”, Editora Sextante, São Paulo-SP.
[5] MAHARSHI, Ramana.

Agir ou não agir: possibilidades da Aceitação no dia a dia (III)

Walter S. Barbosa[1]
Alguém pode perguntar: “O que vem antes, a aceitação ou a entrega?” Podemos indagar de volta: “Aceito porque entrego, ou entrego porque aceito?”.

Inicialmente, temos a impressão de que a entrega vem antes. Só aceitamos porque entregamos. Como a entrega surge? Será que é uma escolha mental? Certamente não é. Não podemos escolher não ter medo. A eliminação do medo surge em nossa natureza na medida em que as razões do medo são eliminadas. Podemos escolher, no entanto, examinar essas razões, ir ao fundamento do medo.

Não é preciso examinar muito para saber que a razão do medo está na ignorância do desconhecido. É essa ignorância que nos torna apegados ao conhecido. Por sua vez, essa é a origem das impregnações da mente. Se pudermos nos convencer da absoluta falta de razão para o medo, ele desaparecerá.

Não podemos escolher não ter medo, mas podemos escolher a eliminação da ignorância. Aquilo que é conhecido nos dá, naturalmente, maiores condições de controle, de redução da insegurança, de diminuição do medo. Para que as razões do medo sejam eliminadas, o desconhecido deve se tornar conhecido, o que significa reduzir nossa ignorância quanto àquele assunto em particular.

Entretanto, essa escolha não é tão simples. Não se trata apenas de um processo mental. Todo comportamento é fruto de uma impregnação material – ou energética – em nossa vida. Independentemente das causas, uma crença qualquer determinou o início dessa impregnação, convertendo essa crença num hábito – ou pensamento-hábito, como diz Mehta. Hábito é energia congelada em determinado comportamento. Para mudar isso há necessidade de esforço, de determinação.

Só estamos dispostos a fazer esforços numa direção contrária aos nossos hábitos quando nos convencemos o quanto esse hábito é prejudicial à nossa vida. Convencidos, por exemplo, de que determinado vício está nos matando, não compensando o prazer que nos dá, então podemos nos esforçar para eliminá-lo. A partir desse momento (que envolve mudança em nossa crença), percebemos que a segurança propiciada por esse hábito é ilusória – na verdade, um motivo de insegurança.

Estarmos “convencidos” de algo significa que examinamos profundamente o objeto em questão e criamos um novo ponto de vista a seu respeito. Seja qual for o motivo desse exame, o fato é que a motivação foi bastante forte para gerar a alteração na crença.

Pode ser, no entanto, que a simples conversa com um amigo ou a leitura de um livro tenha gerado esse click, o que significa então que o campo já estava preparado para a mudança. Até o canto de um pássaro – interrompendo o fluxo incessante dos nossos pensamentos – pode ser a gota que faça transbordar o copo, abrindo caminho à força interior para mudar o comportamento.

Sim, porque todo estímulo final para a mudança vem de dentro. Aquilo que queremos atingir de melhor em nossa vida já está lá dentro. O que impede a maior atuação dessa força são nossas impregnações mentais, os pensamentos-hábitos, tudo que acumulamos no sentido de proteger nosso prazer, de aumentar nossa segurança.

As impregnações mentais são a maior causa de nosso medo, de nossa incapacidade de caminhar na direção do desconhecido, gerando resistência aos fatos da vida e também à possibilidade de estar no Agora. Quando deixamos de resistir, nos entregamos, aceitamos, nos rendemos, deixando de criar oposição aos fatos e passando a ver as coisas “como elas são”.

Então, é possível que a aceitação e a entrega sejam uma coisa só, que aconteçam simultaneamente. Também pode ser que a aceitação – como algo representativo do aspecto feminino, como diz Pierrakos – chegue antes, levando à quebra da resistência que tem uma característica masculina, como fortaleza do ego. A quebra dessa resistência levaria à entrega. 
 
Examinamos o aspecto da aceitação do ponto de vista dos fatos, daquilo que a vida coloca diante de nós, podendo gerar resistência ou aceitação. Outro ponto relevante está na questão de aspectos internos, como limitações da personalidade, manifestando-se externamente como ira, maledicência, uso de drogas e outros tantos defeitos. Como fica a aceitação diante disso?

Caso nos curvemos ao defeito – inclusive defendendo-o, como acontece algumas vezes – estaríamos aceitando-o como um fato em nossa vida (e assim tendo condições de superá-lo), ou estaríamos simplesmente caindo na autoindulgência, levando ao adiamento do esforço para mudar? 

A questão da defesa e manutenção dos nossos comportamentos se explica pela profunda identificação que temos com eles, mesmo os mais perniciosos. Somos o próprio hábito! Como reconhecer a necessidade de ação sobre ele se nos tornamos uma coisa só, como “unha e carne”? Nesse caso, o grau de impureza e dependência é tão profundo que negar o hábito é negar nossa própria natureza – e isso não faz parte do anseio de continuidade do ego.

É bem conhecida a frase de Rogers[2]: “Quando me aceito como sou, posso então mudar”. Acontece que, ao nos aceitar como somos, deixamos de resistir a essa condição. Deixar de resistir significa criar dentro de nós um campo de neutralidade onde a observação pura – sem julgamento – se torna possível, permitindo então que nos desidentifiquemos da situação observada.  

Tudo que podemos observar torna-se objeto de consciência, despertando quanto a esse ponto certo grau de iluminação em nossa vida. No caso de um defeito isso significa reconhecer, a partir dos olhos internos: “Isto é ira”, ou “Isto é maledicência”, adquirindo condições reais de pôr um fim naquilo.

Conclui-se daí que a aceitação, como instrumento de consciência, não pode se confundir com autoindulgência, situação esta em que nos entregamos ao comportamento negligente ou conflitante por uma questão de conforto ou, mais propriamente, de fraqueza (a frase de Rogers, por sinal, é muitas vezes tomada nesse sentido). Ao contrário da autoindulgência, a aceitação tem raízes em um processo de maturidade e grandeza interiores. É uma entrega não aos poderes do vício, mas sim aos poderes de Deus em nós mesmos, suplantando as reivindicações e limites do ego.

Unicamente nessa capacidade de entrega ao Deus Interno encontra-se a alternativa de agir efetivamente – virando a página da reatividade, criando uma história nova , ou não agir. É a situação conhecida no Bhagavad-Gita, onde Krishna – Deus personificado – dirige o carro em que Arjuna combate. Na verdade, Krishna combate através dele. Só assim podemos atuar sem erro em nossas lutas diárias, deixando que a sabedoria e o amor viventes em nossa condição divina se manifestem no mundo.

Há uma situação especial em que o agir se reveste da necessidade de urgência, de atitude enérgica e imediata: quando nosso coração é ferido diretamente pela desorientação ou abuso contra os mais fracos ou indefesos, como desvalidos, idosos e crianças. Então só podemos pedir que a sabedoria do Eterno possa estar acompanhando nossos atos.

Agir e não agir são possibilidades da mesma natureza, tendo a entrega por diretriz. Vêm de dentro. Não agir é o agir negativo, que se recolhe na expectativa dos frutos da reta ação, deixando que esses frutos se estabeleçam como decorrência do fluxo da vida, que é sábio por si mesmo. Agindo ou não agindo estaremos de acordo com esse fluxo, nos tornando ele próprio. Dessa maneira esgota-se também a sementeira do Karma, habilitando-nos, enfim, para trilhar a Senda.


[1] Membro da Sociedade Teosófica e Diretor da Associação Educacional Besant (UNICONSPORTAL).
[2] ROGERS, Carl. “Tornar-se pessoa”, Editora Martins Fontes.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Desejo-medo: nosso paradoxo essencial?



Walter S. Barbosa[1]
O desejo pode ser considerado o motor do universo, ou seja, aquilo que dá movimento à vida universal. É o próprio fluxo da vida em nosso plano, sustentando o impulso do "vir a ser". Já o medo é aquilo que aprisiona, que congela esse movimento, ocasionando a estagnação, principalmente aquela de natureza patológica.

É comum dizermos que determinada pessoa é acomodada. Por que ela se acomodou? O estudante de astrologia sabe que, para uma pessoa com predomínio do elemento terra em seu mapa, pode haver uma tendência muito grande a se acomodar. Ele só caminha com os pés firmes no chão. Em boa medida, é a virtude da prudência ou estabilidade em construção, algo que temos de aprender com o elemento terra, passando dezenas de vezes pelas experiências da roda zodiacal (onde desenvolveremos também as virtudes geradas pelos elementos ar, fogo e água). 

Por outro lado, se esse anseio de segurança estiver travando a vida dessa pessoa, pode haver algo de patológico nisso, sob o comando do medo. Aí, nem mesmo a ambição provocada pelo desejo fará grandes mudanças. A ambição pode de fato nem existir, gerando o contrário daquilo que a ambição exagerada provoca: inércia, ausência de crescimento material e psicológico, com possíveis graus de dependência daqueles que lhe forem próximos.

O desejo e o medo, como forças antípodas, podem estar no centro de um mal que nos acomete na generalidade da condição humana: a incapacidade de ver as coisas “como elas são”. Apesar de fisiologicamente sadios – não carregando deficiências aparentes –, padecemos dessa cegueira elementar, baseada nas distorções criadas por nossa mente, sob a influência do desejo e/ou do medo. Tais distorções acabam se tornando o fruto – e também alimento – da nossa ignorância. É a miséria nutrindo a si mesma.

De tal cegueira, dois efeitos são distinguíveis em nosso dia a dia: 1) O estado de relativa insanidade que nos acomete, gerando conflitos internos e agredindo nossas relações; 2) O subdesenvolvimento de nosso cérebro, sempre nanico por falta de material novo com que trabalhar. Tudo para ele é rotina – que o desejo não aplaca senão fugazmente, em virtude da fome de sensações novas, que se tornam instantaneamente velhas.

Em geral, consideramos insana a pessoa que se encontra desfocada da realidade. E o que é real para cada um de nós – estritamente –, alimentando nossas crenças e as decisões decorrentes, por mais desastrosas que sejam? Isso depende da interpretação daquilo que vemos, estando essa função relacionada com a mente, conforme nossa bagagem particular. Como tal interpretação fica sendo o próprio significado daquilo que é visto – valendo como a coisa em si – então quem de fato vê é a mente. 

Nosso banco de memórias é nada mais que um banco de interpretações, de conceitos. O que a mente vê depende do que está arquivado nesse banco, sendo suas memórias de dois tipos: a psicológica e a operacional, segundo Mehta[2]. A operacional, objetiva, dá sustentação aos nossos atos triviais de cada dia: no trabalho, na direção de um carro, na preparação do alimento. Sem essa memória teríamos que reaprender tudo diariamente, o que nos tornaria incapacitados para essas atividades. 

Já a memória psicológica – que talvez possa ser chamada “memória de relações” – está conectada ao nosso campo emocional-mental (kama-manas, no sânscrito), que é governado pelos desejos. A subjetividade é a natureza desse campo, alimentado pelas interpretações que formulamos desde nossos primeiros contatos com o mundo, recebendo as impressões de nossos pais enquanto criávamos as nossas (estas, portanto, frutos do meio e de nossos próprios impulsos). Esse foi desde cedo o laboratório do ego, manobrando com os desejos – num jogo de atração e repulsão – sob o jugo do medo e da respectiva insegurança. 

Dentro desse laboratório, o senso de propriedade – ou de possuir e ser possuído – tem um significado especial. É o meio de diminuir a insegurança. Assim, desde logo nos sentimos atraídos por acumular tudo que possa significar segurança, continuidade, e a repelir tudo que represente o contrário. Essa, por sua vez, é a origem do apego, desejando e acumulando não apenas coisas, mas também afetos, pessoas – algo que não está parado, que tem seu próprio movimento, seus próprios desejos! Pode-se imaginar fonte maior de conflito, de insanidade?

Ao expressarmos um pensamento, ainda que diante de um fato novo, o registro emoção-mente conecta-se de maneira instantânea com a impressão passada da mesma natureza (tem a rapidez do raio, pelas conexões bioelétricas envolvidas) e o fato novo envelhece em seguida. Assim, praticamente nada consegue mudar esses registros, o que – além de afetar nosso avanço consciencial – resulta no embotamento do cérebro e de nossas possibilidades criativas.

Para os relacionamentos, a tragédia desse envelhecimento perpétuo, desse embotamento da criatividade – abrangendo tudo que tocamos por meio dos registros defasados da mente – é a impossibilidade de renová-los, de manter o frescor do primeiro encontro, quando o senso de propriedade espreitava, mas ainda não havia se instalado. O germe do amor, que poderia se desenvolver a partir dai, provavelmente não passará desse botão, com tendência para minguar e morrer. 

É possível que a infidelidade em nossas relações – pulando de galho em galho – tenha muito a ver com esse estado de coisas, com essa incapacidade criativa, buscando uma sensação nova enquanto sufocamos o medo de perder (sufocar, entretanto, não é superar). 

Onde há medo a realidade não pode ser vista, a ilusão predomina. A conexão desejo-medo, então, é o grande impedimento à percepção da realidade, gerando também obstáculos à expansão – ou desdobramento – da consciência. Onde há medo a consciência não se “des-envolve”. Tal consciência é um minúsculo botão ou germe dentro de nós, hiperconcentrado[3]. Tudo se encontra nele em potencial, como acontece em uma semente.

Mas uma semente necessita de ambiente próprio para germinar, recebendo a umidade e os nutrientes da terra. A água, ao fluir, carrega os nutrientes (assim como a emoção carrega em nós os pensamentos e os atos que irão concretizá-los). Quando germina, a semente de fato revela ou desdobra seu potencial. O medo é a energia paralisante das águas das emoções, tornando-as semelhantes a um pântano. Por essa razão, o amor – como um ato de autoentrega – não se desenvolve aí. Nesse lugar, a própria semente tende a apodrecer. Esses são os potenciais perdidos ao longo de uma vida, alguns talvez para sempre.

Pela conexão desejo-medo, os manuais esotéricos estão sempre recomendando a extinção do desejo. Que mal pode haver, por exemplo, em desejarmos uma fruta? No entanto, se criarmos dependência a respeito, o medo de ficar sem ela poderá se tornar uma obsessão, um flagelo. Quando o desejo se extingue leva consigo o medo (se nada desejamos, porque temer?), possibilitando a expansão da consciência. 

O paradoxo, no entanto, é que o desejo representa movimento em si mesmo, como já mencionamos, e não estagnação. Há muitas pessoas que vivem paralisadas exatamente por falta de ambição, de um desejo mais intenso. Entre os elementos que podem auxiliar a pessoa a sair da estagnação está justamente a existência da diversidade de interesses, como também diz Mehta.

O que existe antes do desejo? Naturalmente, a memória psicológica do apego. Não fosse por essa memória, levando ao anseio de repetir o prazer, como iríamos desejar? Há coisas, no entanto – como a iluminação, ou libertação espiritual – que nunca experienciamos, mas podemos desejar. Esse é outro paradoxo (talvez impulsionado pelo anseio de germinação embutido na semente – que carregamos dentro de nós – trazendo a memória ancestral do “paraíso”). O desejo, nesse caso, está colaborando para sua própria extinção!

Então, por trás da eliminação – ou apaziguamento – do desejo, e consequentemente do medo, está a eliminação do apego. Essa, contudo, é a própria tábua de salvação do ego, que pela manutenção de suas propriedades, busca continuar existindo. Sua identidade só existe nelas. Nem mesmo a constatação diária de que nossos objetos de apego são perecíveis – em sua totalidade – consegue fazer com que nos livremos deles (esse é “o maior milagre do mundo”, conforme um sábio indiano).

Contudo, “não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe” diz um adágio popular. A sabedoria existente nessa frase patenteia a realidade do fluxo da vida: os polos sempre sucedendo a si mesmos, no conhecido jogo da dualidade.

Ao fim desse processo (porque ele tem um fim), esses polos se aproximam tanto, que acabam se devorando mutuamente, sem retorno. É quando o desejo, de tão sutil – ao desejarmos a própria libertação – vence a última barreira do medo e nos projeta para além de toda posse, de todo apego. Aí – paradoxalmente – nos convertemos em donos da própria eternidade, nos confundido com ela. 

Cabe lembrar ainda que o amor – como a liga universal capaz de suplantar o abismo da separatividade – possui o dom de ser o antídoto para aquilo que o envenena. O amor pode engolir o medo e nos levar às delícias da imortalidade, descobrindo que é unicamente pela morte da autoentrega que podemos viver. 

Inicialmente levado a se expressar pelo desejo – buscando essa aproximação que nos fascina, em busca de autocomplementação – o amor-paixão poderá nos levar a desatinos, sob a ganância da posse, conforme a insanidade geral que caracteriza nossas vidas, não conseguindo ver as coisas como elas são.

A vocação do amor, no entanto, é se dilatar sem limites. Se permitirmos que ele aconteça, poderá ser o meio mais rápido de vencermos a insanidade, em cuja raiz repousa a ilusão – e, consequentemente, o medo – de nos sentirmos separados do resto do mundo. 

Ao fim dessa ilusão, levando consigo a energia primária do "vir-a-ser" plantada no útero do desejo, deverá restar apenas o Ser, nossa natureza real, Deus em nós mesmos. Pode-se desejar algo mais? Isso é plenitude, de um jeito inconcebível para nós neste momento – considerando que só conseguimos enxergá-la no amontoado de espuma em nossas mãos –, estranhamente chamando isso de patrimônio, segurança, felicidade. 


[1] Membro da Sociedade Teosófica e Presidente da Associação Educacional Besant (UNICONSPORTAL).
[2] MEHTA, Rohit. “Yoga, a Arte da Integração”, Editora Teosófica, 1995, Brasília-DF.
[3] TAIMNI, I.K. “O Segredo da Autorrealização”, Editora Teosófica, 2009, Brasília-DF.