Walter S. Barbosa[1]
Na medida em que a
dualidade “bem e mal” perde força dentro de nós, rumo à unidade – significando
uma percepção cada vez maior do Todo –, cresce a consciência do prazer e da dor
como o jogo que nos mantém presos a este mundo em permanente estado de
frustração. A partir de tal consciência, passamos a ansiar por uma meta mais
elevada. Contudo, há que se perguntar: o que vem depois? O que nos aguarda para
além dos limites do prazer a que somos convidados a renunciar, na perspectiva
de algo infinitamente maior?
Quanto a essa questão
apenas o Mestre pode nos informar. Maharshi sintetiza aquilo que está para além
do jogo da dualidade na frase “o supremo bem da Paz”. Mas outra questão surge: O
que seria esse “supremo bem” na frase do Mestre? Estaríamos de volta ao bem que
se opõe ao mal?
O qualificativo “supremo”
aí sabiamente colocado indica pelo menos duas coisas: 1) que o bem é a natureza
última do universo, como expressão da felicidade representada por ananda (um dos atributos do espírito),
que buscamos nos prazeres deste mundo; 2) que esse bem, portanto, nada tem a
ver com o mal, por situar-se nos reinos do espírito, longe da dualidade
existente no ego. Pela mesma razão, a paz sintetizada nesse bem não é o
contrário da guerra, assim como o amor incondicional que essa paz representa
também não é o contrário do ódio. Então, que paz seria essa?
Se em algum momento desta
vida tivermos tido um vislumbre dessa paz – que imaginamos alheia a qualquer
vínculo material –, poderemos ter uma vaga ideia de seu significado.
Na filosofia budista ela é às vezes expressa como vacuidade, ou vazio, onde
unicamente se pode expressar a plenitude da consciência pura. Por sinal, "extinção" é o significado da
palavra nirvana – equivalendo ao sentido de vacuidade –, o que pode parecer
decepcionante por nossa ideia de plenitude geralmente baseada em abundância de
coisas materiais (a mente com certeza indagará: "Como ser pleno no vazio?").
Tomando, então, como
ponto de partida nossa própria ausência de paz, concluímos que seu fundamento
maior talvez esteja na palavra “incompletude”. Dessa forma, a causa real de
nossa infelicidade estaria em nos sentirmos incompletos, divididos, buscando
compensar isso com as sensações de prazer que este mundo proporciona – riqueza,
poder, comida, fama, sexo – gerando com isso apego e dependências de todo
tipo. Ou seja, dor.
A dependência com
respeito ao sexo deve exprimir a incompletude maior, pois buscamos nessa
relação o encontro com o oposto feminino (no caso do homem), ou masculino (no caso
da mulher). O dilema dessa relação – que nunca se completa, como indica a
insatisfação dos amantes –, é explicado pelo fato de termos esses opostos dentro
de nós mesmos. Buscamos fora aquilo que se encontra dentro. Eles são conhecidos
no hinduísmo como Shiva (a força sem
limites da consciência pura) e Shakti
(a energia primordial da criação), assim exprimindo a dualidade essencial do
universo (espírito e matéria) em cada ser humano. Esse é o ponto a ser
resolvido.
Shiva corresponde ao
princípio masculino, enquanto Shakti ao
feminino, sendo este poder – o feminino – responsável por toda a atividade na
Criação. Assim, Shiva nada representa
sem Shakti. Em consonância com isso, ensina
o Bhagavad-Gita que o espírito nada faz. Toda atividade provém da matéria, com
base em seus atributos (tamas, rajas e satva), significando que o espírito
depende da matéria para entrar na consciência de seu próprio poder (latente
dentro dele). Essa é a razão de ele descer aos mundos materiais densos, repletos
de sofrimento, apesar de perfeito em si mesmo.
Na visão ocidental, porém, o aspecto
masculino é que se encontra ligado à ação, enquanto o feminino representa a
passividade ou, melhor dizendo, a
aceitação (como o recolhimento que aguarda e cultiva pacientemente os
frutos da ação). Tal visão talvez se explique pelo fato de a consciência (atributo
espiritual) situar-se como fundamento de toda ação, significando que a direção
para onde vai o universo é dada pelo espírito e não pela matéria.
Contudo, pela união progressiva entre Shiva e Shakti – levando à harmonização do masculino com o feminino dentro
de cada homem e cada mulher, pelo conhecimento recíproco –, também a ação e a aceitação
se harmonizam, acabando por expressar-se como perfeição naquele que atingiu a condição do Ser (Atma). Por isso o
Bhagavad-Gita ensina o caminho da ação
com desapego – que é também ação na inação, ou ação com aceitação –, dessa
forma auxiliando nossa libertação quanto ao ego.
De acordo com o Tantra, Shakti está presente em todas as coisas e seres do universo – mas
de maneira mais forte e significativa nas mulheres. Da mesma forma, Shiva, seu complemento masculino, está
presente também em todos os seres, mas especialmente nos homens.
Quando Shiva e Shakti finalmente se casam em nossa natureza – levando à
autorrealização ou iluminação – a sensação de incompletude desaparece. O fato de habitarmos
alternativamente corpos femininos e masculinos certamente faz parte desse
processo. Tal casamento deve ser, contudo, precedido pela
dissolução do ego.
Dissolvido o falso eu –
como fator de resistência, apego e isolamento em nosso campo mental –, nos
candidatamos à iluminação, à união efetiva de Shiva e Shakti (representada
pela ascensão de Kundalini), despertando-se em nós ananda, a felicidade suprema, o supremo bem da Paz. Esse,
conjecturamos, deve ser outro significado para a frase crística “Eu e o Pai
somos Um”.
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