domingo, 30 de dezembro de 2012

Shiva e Shakti: o casamento para além do prazer e dor


Walter S. Barbosa[1]
Na medida em que a dualidade “bem e mal” perde força dentro de nós, rumo à unidade – significando uma percepção cada vez maior do Todo –, cresce a consciência do prazer e da dor como o jogo que nos mantém presos a este mundo em permanente estado de frustração. A partir de tal consciência, passamos a ansiar por uma meta mais elevada. Contudo, há que se perguntar: o que vem depois? O que nos aguarda para além dos limites do prazer a que somos convidados a renunciar, na perspectiva de algo infinitamente maior?

Quanto a essa questão apenas o Mestre pode nos informar. Maharshi sintetiza aquilo que está para além do jogo da dualidade na frase “o supremo bem da Paz”. Mas outra questão surge: O que seria esse “supremo bem” na frase do Mestre? Estaríamos de volta ao bem que se opõe ao mal?

O qualificativo “supremo” aí sabiamente colocado indica pelo menos duas coisas: 1) que o bem é a natureza última do universo, como expressão da felicidade representada por ananda (um dos atributos do espírito), que buscamos nos prazeres deste mundo; 2) que esse bem, portanto, nada tem a ver com o mal, por situar-se nos reinos do espírito, longe da dualidade existente no ego. Pela mesma razão, a paz sintetizada nesse bem não é o contrário da guerra, assim como o amor incondicional que essa paz representa também não é o contrário do ódio. Então, que paz seria essa?

Se em algum momento desta vida tivermos tido um vislumbre dessa paz que imaginamos alheia a qualquer vínculo material , poderemos ter uma vaga ideia de seu significado. Na filosofia budista ela é às vezes expressa como vacuidade, ou vazio, onde unicamente se pode expressar a plenitude da consciência pura. Por sinal, "extinção" é o significado da palavra nirvana equivalendo ao sentido de vacuidade –, o que pode parecer decepcionante por nossa ideia de plenitude geralmente baseada em abundância de coisas materiais (a mente com certeza indagará: "Como ser pleno no vazio?").

Tomando, então, como ponto de partida nossa própria ausência de paz, concluímos que seu fundamento maior talvez esteja na palavra “incompletude”. Dessa forma, a causa real de nossa infelicidade estaria em nos sentirmos incompletos, divididos, buscando compensar isso com as sensações de prazer que este mundo proporciona – riqueza, poder, comida, fama, sexo – gerando com isso apego e dependências de todo tipo.  Ou seja, dor.

A dependência com respeito ao sexo deve exprimir a incompletude maior, pois buscamos nessa relação o encontro com o oposto feminino (no caso do homem), ou masculino (no caso da mulher). O dilema dessa relação – que nunca se completa, como indica a insatisfação dos amantes –, é explicado pelo fato de termos esses opostos dentro de nós mesmos. Buscamos fora aquilo que se encontra dentro. Eles são conhecidos no hinduísmo como Shiva (a força sem limites da consciência pura) e Shakti (a energia primordial da criação), assim exprimindo a dualidade essencial do universo (espírito e matéria) em cada ser humano. Esse é o ponto a ser resolvido.

Shiva corresponde ao princípio masculino, enquanto Shakti ao feminino, sendo este poder – o feminino – responsável por toda a atividade na Criação. Assim, Shiva nada representa sem Shakti. Em consonância com isso, ensina o Bhagavad-Gita que o espírito nada faz. Toda atividade provém da matéria, com base em seus atributos (tamas, rajas e satva), significando que o espírito depende da matéria para entrar na consciência de seu próprio poder (latente dentro dele). Essa é a razão de ele descer aos mundos materiais densos, repletos de sofrimento, apesar de perfeito em si mesmo.

Na visão ocidental, porém, o aspecto masculino é que se encontra ligado à ação, enquanto o feminino representa a passividade ou, melhor dizendo, a aceitação (como o recolhimento que aguarda e cultiva pacientemente os frutos da ação). Tal visão talvez se explique pelo fato de a consciência (atributo espiritual) situar-se como fundamento de toda ação, significando que a direção para onde vai o universo é dada pelo espírito e não pela matéria.

Contudo, pela união progressiva entre Shiva e Shakti – levando à harmonização do masculino com o feminino dentro de cada homem e cada mulher, pelo conhecimento recíproco –, também a ação e a aceitação se harmonizam, acabando por expressar-se como perfeição naquele que atingiu a condição do Ser (Atma). Por isso o Bhagavad-Gita ensina o caminho da ação com desapego – que é também ação na inação, ou ação com aceitação –, dessa forma auxiliando nossa libertação quanto ao ego.

De acordo com o Tantra, Shakti está presente em todas as coisas e seres do universo – mas de maneira mais forte e significativa nas mulheres. Da mesma forma, Shiva, seu complemento masculino, está presente também em todos os seres, mas especialmente nos homens. 

Quando Shiva e Shakti finalmente se casam em nossa natureza – levando à autorrealização ou iluminação – a sensação de incompletude desaparece. O fato de habitarmos alternativamente corpos femininos e masculinos certamente faz parte desse processo. Tal casamento deve ser, contudo, precedido pela dissolução do ego.

Dissolvido o falso eu – como fator de resistência, apego e isolamento em nosso campo mental –, nos candidatamos à iluminação, à união efetiva de Shiva e Shakti (representada pela ascensão de Kundalini), despertando-se em nós ananda, a felicidade suprema, o supremo bem da Paz. Esse, conjecturamos, deve ser outro significado para a frase crística “Eu e o Pai somos Um”.


[1] Membro da Sociedade Teosófica e da Universidade Livre para a Consciência.

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