Walter S. Barbosa[1]
Todo o poder de realização no
mundo vem por meio do "fazer", e o fazer é algo externo, começando
com a atividade do pensamento. Tal realização só acontece por meio de forças
materiais, dotadas de vontade própria, sendo esse o campo de atuação do ego.
Assim, enquanto não temos nossa vontade
suficientemente desenvolvida – como Ser – o que predomina nesse fazer é a
vontade do ego.
Ensina o Bhavagad-Gita que o
Ser não faz nada. Tudo é feito pelos atributos da matéria, chamados em
sânscrito de tamas (estagnação,
inércia), rajas (movimento, desejo) e
satva (equilíbrio, harmonia). Mesmo
quando a realização do indivíduo for a mais pura possível, quem estará “fazendo”
é a matéria. Como chegar a esse estado de pureza, onde o jugo da matéria sobre
nós é infinitamente menor? Naturalmente, só pelo caminho do Ser. Isso
representará algo a ser feito, ou não? Representará esforço, ou não?
Em vários pontos da
literatura esotérica é dito que mesmo as obras meritórias prendem o caminhante. Ali há um resquício de satva que
representa poder material, apesar de mais elevado. Mas é provável que a
libertação desse domínio não exija tanto esforço (apesar de cada nível ter seu
próprio desafio), pois satva é de natureza leve. Além disso, a essa altura o
caminhante já desenvolveu a vontade. E quanto a nós? Como introduzir em nossa
vida hábitos que possam representar alguma identificação com o Ser, estando
ainda impregnados pela inércia de tamas
(preguiça, vícios, hábitos densos), e pela inconstância de rajas (desejos, apegos, etc.)?
Segundo Mehta[2],
de fato há necessidade de esforço nessa fase de nosso crescimento. Se não
houver, como mudar a direção desordenada de nossa vida? Como introduzir, por
exemplo, ao menos 15 minutos em nossa atividade diária (1,6% do tempo de
vigília) para um instante de recolhimento, um prelúdio de meditação, ou para a
reflexão no fim do dia?
Esse esforço inicial, com
renúncia ao “fazer” externo e interno (interrompendo a corrente dos pensamentos),
é a abertura necessária para que o Ser possa aos poucos assumir o controle dos corpos
hoje a serviço do ego, fortalecendo-se em vontade dentro deles.
Misteriosamente essa vontade
cresce no próprio reino do ego, à semelhança de um “cavalo de Tróia”, inicialmente
como vontade material – que é a
tenacidade em torno dos objetivos do ego, insuflados pelo desejo – para depois
se tornar a vontade espiritual, capaz
de renunciar àqueles mesmos objetivos. A mudança é tão sábia e tão sutil que
acabamos um dia desejando a iluminação, cuja culminância sepultará
definitivamente o ego em sua conotação de
separatividade, permanecendo, entretanto, suas conquistas como tesouro do
“Filho Pródigo”: o conhecimento e domínio da matéria.
O que mais pode fazer parte
desse esforço? O Senhor Buda nos orienta: “Deixar de fazer o mal, fazer o bem e
purificar a mente: essa é a lição de todos aqueles que despertaram”. Quem se
observa deve ter notado o esforço necessário, especialmente em autovigilância –
o que significa colocar consciência em
cada ato – para realização dessas etapas. Mesmo já sendo estudantes da
Senda, quantas vezes nos pegamos na prática da maledicência, na fomentação da
discórdia? Quantas vezes nos surpreendemos aumentando a impureza da mente no
cultivo da violência e da sensualidade?
O processo da meditação, em
si – a partir do torvelinho em que vivemos – é um esforço da consciência em voltar-se para dentro, enquanto estamos
totalmente voltados para fora. Depois que esse caminho for aprendido, no
entanto, talvez seja até difícil fazer o contrário, ou seja, ficar presos do
lado de "fora", como nos mostram passagens da vida de Ramakrishna,
que tendia a ficar na maior parte do tempo em samadhi.
Ressalte-se que podemos
colocar em prática simultaneamente os dois processos: enquanto nos esforçamos, abrindo
espaços para a jornada interior no dia a dia, com mais consciência em cada ato – evoluindo para seu aspecto mais sutil, que são os pensamentos e sentimentos – realizamos também a entrega de tudo que fazemos ao Ser (Deus Pessoal), incluindo
as obras não meritórias. Dessa forma
começa a rendição do ego.
A partir de certo ponto, o
esforço em nossa caminhada não mais será necessário, podendo até ser prejudicial,
porque todo esforço traz em si uma expectativa de controle, denunciando as
táticas de acumulação do ego voltadas para o “ter”. Então, tudo que de melhor
podemos “fazer” nessa fase mais adiantada, mantendo a autovigilância, é nos
abrir à sutil voz interior, à mão misteriosa da sincronicidade, deixando-nos fluir
como o rio que já conhece seu destino, em direção ao infinito do Ser.
[1]
Membro da Sociedade Teosófica e da Universidade Livre para a Consciência – www.uniconsportal.org.br
[2]
MEHTA, Rohit. Yoga – a Arte da Integração, Editora Teosófica.
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