Lama Anagarika Govinda (*)
A meditação sempre foi o
principal requisito da doutrina Budista de liberação. Entretanto, quanto mais
as mais diferentes técnicas de meditação, suas definições psicológicas e seus
princípios metafísicos e filosóficos eram explicados, classificados, e fixados
em comentários e sub comentários, mais as práticas de meditação eram
negligenciadas e sufocadas por discussões teóricas, regras e regulamentos
morais, e infindáveis recitações de textos sagrados.
A reação foi uma revolta contra
as escrituras e a erudição e um retorno a uma experiência mais direta e
espontânea. Ao pedantismo de um pensamento escolástico e de lógica intelectual
opôs-se a ferramenta do paradoxo que, qual uma afiada espada, cortou os nós de
problemas artificialmente criados com a velocidade do relâmpago o que nos dá um
relance da verdadeira natureza das coisas. O paradoxo, entretanto, é uma espada
de dois gumes. Tão logo ele se torna algo rotineiro, destrói a própria coisa
que ajudou a revelar. A força de um paradoxo, como a de uma espada, está no
inesperado e na velocidade com que ela é manejada; por outro lado não é melhor
do que a faca nas mãos de um açougueiro.
Um fino exemplo é a estória de
dois monges chineses que mantinham uma disputa a respeito de uma bandeira
movendo-se ao vento. Um sustentava que a bandeira estava se movendo; o outro de
que era o vento que a movia. Hui – Neng, o Sexto Patriarca na China, que ouvia
por acaso a discussão, disse: “Nem o vento nem a bandeira estão se movendo, é a
mente de vocês que está se movendo.” Mas Mummon, um Patriarca Japonês do século
XIII, não satisfeito com esta resposta, foi um passo além e disse: “Nem o
vento, nem a bandeira, nem a mente estão se movendo,” referindo-se ao princípio
essencial de sunyata, no qual não há
nem o ir nem o vir, mas no qual ambos os aspectos subjetivos e objetivos da
realidade estão incluídos.
Esta realidade além dos opostos,
contudo, não deve ser separada ou abstraída de seus expoentes; a
transitoriedade não deve ser separada da eternidade. A mais perfeita auto
expressão individual é a descrição mais objetiva do mundo. O maior dos artistas
é aquele que expressa o que é sentido por todos. Mas como é que ele faz isto?
Sendo mais subjetivo do que outros. Quanto mais ele expressa a si mesmo, isto é o seu ser mais íntimo,
mais próximo ele se mostra aos outros. A nossa natureza real não é o nosso ego
limitado e imaginário; é o vasto e oniabrangente espaço, tão intangível quanto
vazio. É sunyata em seu sentido mais
profundo. O segredo da arte é que revela o supra individual através da
individualidade, o “não-ser” através do “ser”, o objeto através do sujeito. A
arte em si é uma espécie de paradoxo, e é por isso que todas as escolas de
meditação do Budismo no Extremo Oriente, como no Tibet e regiões vizinhas, dão
a ele esta importância tão grande.
A MENSAGEM DO SEXTO PATRIARCA
Como um exemplo do uso ideal de
paradoxos, podemos mencionar o Sutra do Sexto Patriarca. Ele foi bem sucedido
em expressar a atitude espiritual do Zen de uma maneira que nem ofende o nosso
bom senso nem tenta fazer do bom senso a medida de todas as coisas. O leitor
desta escritura se situa, desde o início, na reta atmosfera que o capacita a
colocar-se acima do plano de sua consciência diária, numa espontânea
participação na realidade de um nível mais alto de consciência. A figura do
Sexto Patriarca impressiona pela sua espontaneidade natural, que deveria ser
inerente a cada ser humano e com a qual o leitor sem preconceitos pode
facilmente se identificar. Deste modo ele é capaz de participar internamente
nas experiências e ensinamentos do Sexto Patriarca, cuja própria vida tornou-se
o símbolo máximo do Budismo Zen.
O noviço de Kwang-tung, cuja
mente não estava ainda sobrecarregada por qualquer problema filosófico,
penetrou espontaneamente no centro da vida espiritual: a experiência do Budado.
Essa experiência não depende de regras monásticas e erudição, de ascetismo e
virtuosidade, de conhecimento livresco e da recitação de textos sagrados, mas
tão somente da realização do espírito vivo dentro de nós.
O Sexto Patriarca atingiu um
estado de espontânea iluminação sem ter tido qualquer educação formal e
escolar, embora por outro lado foi, ao ouvir a recitação do Sutra Diamante que
seu interesse foi despertado e sua visão espiritual foi aberta. A experiência
espontânea, portanto, pode muito bem ser o produto de uma antiga tradição
consagrada, se esta tradição contém símbolos de uma realidade supramental (a
psicologia moderna os chamaria de “símbolos arquetípicos”) ou formulações que
levam a mente além do círculo estreito do raciocínio mundano. No choque
inesperado entre uma mente sensitiva e tais símbolos e formulações, as portas
da percepção interna são subitamente abertas e o indivíduo se capacita a
identificar-se com essa realidade supramental contida naquelas formulações e
símbolos.
O Sexto Patriarca veio de uma
família boa, porém empobrecida de Kwang-tung. Um dia quando ele estava vendendo
madeira de fogão no mercado de Kanton, ele ouviu a recitação do Sutra Diamante,
e isto despertou uma resposta tão profunda nele que ele decidiu entrar no
monastério da Escola Zen, cujo abade era o Quinto Patriarca. Ele tornou-se um
noviço ali, e nessa condição, foi dado a ele o trabalho mais humilde no
estábulo e cozinha do monastério. Um dia o abade convocou todos os seus
discípulos a fim de escolher um sucessor. Como ele desejava ter certeza de
escolher um digno sucessor, alguém que tivesse não apenas compreendido, mas
realizado a mensagem do Zen, ele pediu aos monges reunidos para escreverem uma
estrofe a respeito da natureza mais íntima da mente.
Entretanto, ninguém ousou
apresentar-se, com a exceção do erudito Shin-shau, a quem todos já consideravam
o sucessor do Quinto Patriarca. Ele escreveu seu verso na parede do corredor, a
fim de descobrir a opinião do Patriarca e anunciar a sua autoria apenas se o
Patriarca ficasse satisfeito com verso. O Patriarca, entretanto, embora
apreciasse as palavras, pediu a Shin-shau que meditasse sobre elas durante
alguns dias e então escrevesse outra estrofe que mostrasse que o seu autor
tinha passado pelo “portal da iluminação”- em outras palavras, que ele
realmente tivesse experenciado aquilo que tinha escrito.
Dois dias mais tarde aconteceu
que um jovem, que passava pelo quarto no qual o jovem noviço de Kwang-tung
estava descascando arroz, recitou em voz alta a estrofe do Shin-shau. O noviço,
logo em seguida, foi para o corredor onde Shin-shau tinha escrito o seu verso e
pediu a um visitante, que passava por ali, para ler para ele o verso, dado que
ele não podia ler nem escrever. Depois que o visitante leu em voz alta o verso
para ele, o noviço disse que ele também tinha composto uma estrofe, e pediu ao
visitante que a escrevesse abaixo do verso de Shin-shau.
Quando os outros monges viram a
nova estrofe, eles se maravilharam, e quando souberam quem o tinha composto,
disseram entre si: “Como foi possível que permitimos que uma pessoa tão
iluminada trabalhasse para nós. O Patriarca, entretanto, temendo a inveja dos
outros monges, que poderiam magoar o noviço se soubessem que ele iria se tornar
o sucessor do Patriarca, apagou a estrofe com uma das suas sandálias de palha e
pediu ao jovem que viesse a noite para se encontrar com ele. Quando todos no
monastério estavam em profundo sono, ele deu ao noviço a insígnia de seu futuro
cargo e tornou-o o Sexto Patriarca. Ele ordenou então ao noviço para sair de
imediato do monastério e retornar somente quando ele, o Quinto Patriarca,
tivesse falecido. O noviço procedeu como lhe foi pedido, e quando ele retornou
com os mantos do cargo, ele foi reconhecido como o Sexto Patriarca com o nome
de Wei-lang.
Consideremos agora as estrofes de
Shin-shau e a do Sexto Patriarca, porque elas nos dão uma percepção valiosa da
atitude mental da Escola Zen. A estrofe de Shin-shau diz:
Nosso corpo é como
uma árvore de iluminação,
Nossa mente é como
um espelho limpo;
De hora a hora precisa ser limpo,
De modo que nenhuma
poeira se ajunte nele.
Este verso mostra não
apenas uma preocupação pedante pela preservação da pureza do “espelho interno”,
a Mente Original (que de qualquer modo está além da “pureza” e “impureza”),
mas, além disso, mostra que o autor desta estrofe não fala a partir de sua
própria experiência, mas somente como um homem erudito, porque o verso está
baseado em uma expressão do Svetasvatara Upanishad:
Assim como um espelho,
Que foi coberto
com poeira,
Brilha como
fogo, se for limpo,
Da mesma
maneira, aquele que compreendeu a natureza da alma,
Atinge o alvo e
liberta-se da aflição.
Assim Shin-shau estava apenas
repetindo a exposição do Upanishad, sem ter experenciado a realidade da Mente
Original, enquanto que o jovem noviço que tinha captado a quintaessência do
Sutra Diamante em um ato de percepção direta, tinha experenciado naquele
momento a verdadeira natureza da mente. Isto é mostrado pela sua estrofe, que
ao mesmo tempo rejeita a de Shin-shau ao revelar o ponto de vista Budista como
é compreendido pelos Mestres do Zen:
Nosso corpo não é
uma árvore de modo algum,
Nem é a mente um
estojo de espelhos.
Quando tudo está
vazio,
Onde poderia a
poeira acumular-se?
A Mente Original, compreendida como a “Mente
de Buda” ou o princípio de bodhi, o
anseio pela iluminação, que é uma propriedade latente de cada consciência, é
não apenas um reflexo do universo – algo que “espelha” o universo – mas é a
própria realidade universal. Para o intelecto limitado isso pode aparecer
apenas como uma espécie de vacuidade metafísica, a ausência de todas as
qualidades e possibilidades de definição. Bodhi
é, portanto, não algo que se originou ou cresceu como uma árvore; nem é a
mente um mero espelho que só reflete a realidade numa capacidade secundária.
Dado que a mente em si mesma é a vacuidade que a tudo abrange (sunyata), onde
poderia se ajuntar de qualquer modo a poeira? “A essência da mente é grande,
dizemos, porque ela abrange todas as coisas, porque todas as coisas são de
nossa natureza.” Assim não é uma questão de melhorar ou de limpar a nossa
mente, mas a de se tornar consciente de sua universalidade.
O que podemos melhorar é
nosso intelecto, a nossa consciência individual limitada. Isto, entretanto,
jamais pode nos levar além de seus próprios limites, porque permanecemos no
círculo estritamente circunscrito de suas leis inerentes (de tempo e espaço, de
lógica e causalidade). Somente a ultrapassagem de nossas limitações, do
abandono de todos aqueles conteúdos que nos aprisionam àquelas leis, pode nos
dar a experiência da totalidade do espírito e a realização de sua verdadeira
natureza, que é o que chamamos de Iluminação.
A verdadeira natureza de
nossa mente abrange tudo que vive. O voto do Bodhisattva de libertar todos os
seres vivos não é, portanto tão presunçoso como parece. Não é nascido da ilusão
de que um homem mortal pode estabelecer-se como salvador de todos os seres ou o
redentor de todo o mundo, mas é um resultado da percepção de que somente no
estado de iluminação seremos capazes de nos tornar unos com tudo o que vive.
Neste ato de unificação nós libertamos a nós mesmos e a todos os seres
viventes, que estão potencialmente presentes e participam da natureza de nossa
mente, não apenas isso, que são parte de nossa mente no sentido mais profundo.
Esta é a razão porque, de
acordo com os ensinamentos do Mahayana, a liberação em relação aos nossos
sofrimentos, a mera extinção da vontade de viver e de todos os desejos, é
considerada como insuficiente, e porque o empenhar-se na busca da perfeita
iluminação (samyak-sambodhi) é
considerada o único digno objetivo de um seguidor do Buda. Enquanto
desprezarmos o mundo e tentarmos simplesmente escapar dele, nós nem o superamos
nem ganhamos mestria nele e estamos longe de ter atingido a liberação. Portanto
é dito: “Este mundo é o mundo de Buda dentro do qual a iluminação pode ser
achada. Buscar a iluminação separando-nos do mundo é tão tolo como buscar chifre
em lebre”. Porque: “Aquele que trilha sinceramente o caminho do mundo, não verá
as faltas do mundo”.
De modo semelhante não
deveríamos imaginar que pela supressão do pensamento ou de nossas faculdades
intelectuais, podemos atingir a iluminação. “É um grande engano suprimir todo o
pensamento”, diz Wei Lang, o Sexto Patriarca. Zen é o caminho para superar as
limitações de nossa atitude intelectual. Mas primeiro temos que ter
desenvolvido o nosso intelecto, nossa capacidade de pensar, de raciocinar e
discernir, antes que sejamos capazes de apreciar o Zen. Se nós não temos
intelecto algum, isto é, se nunca o desenvolvemos e estabelecemos a mestria
sobre ele, nós não poderíamos superá-lo ou ultrapassá-lo; somente quando temos
mestria sobre ele, é realmente nosso. O intelecto é tão necessário para a
superação da mera emocionalidade e confusão quanto a intuição é necessária para
a superação das limitações do intelecto e seus julgamentos.
A razão, a mais alta
propriedade do intelecto, é o que guia o nosso pensamento intencional. As
finalidades, contudo, são limitadas; e, portanto a razão só pode operar naquilo
que é limitado. Somente a sabedoria (prajna)
pode aceitar e intuitivamente compreender o ilimitado, o atemporal e o
infinito, ao renunciar às explicações e ao reconhecer o mistério, que somente
pode ser sentido, experenciado, e finalmente realizado em vida – e que jamais
pode ser definido. A sabedoria tem suas raízes na experiência, na realização de
nosso ser mais íntimo. A razão tem suas raízes no pensamento. Entretanto, a
sabedoria não desprezará tanto o pensamento como a razão, mas os usará em seu
próprio âmbito, ou seja, no âmbito da ação intencional, como também para a
busca da ciência e para a coordenação de nossas impressões sensoriais,
percepções, sensações, sentimentos, e emoções, tudo em um conjunto
significativo.
Aqui o lado criativo de
nosso pensamento exerce a sua ação, convertendo a matéria prima da experiência
na percepção de um mundo razoável. Quão grande ou pequeno este mundo é, depende
da faculdade criativa da mente do indivíduo. A mente pequena vive no mundo de
seus efêmeros quereres e desejos, a grande mente na infinidade do universo e na
constante percepção daquele insondável mistério que dá profundidade e amplitude
a sua vida e assim impede que ele confunda o seu mundo sensorial com a
realidade última. Entretanto, aquele que penetrou até os limites do pensamento,
ousa saltar na grande vacuidade, o campo primordial de seu ser ilimitado.
RAZÃO E INTUIÇÃO (**)
Se a
intuição não acha ao mesmo tempo uma clara expressão em nosso pensamento, não
pode ter nenhuma influência real em nossa vida, porque nenhuma força pode agir
a menos que esteja formada e direcionada. Por outro lado, pensamentos e verdades
que foram apenas desenvolvidos no plano intelectual devem ser confirmados e
realizados pela experiência direta caso eles tenham que ter o poder de
transformar a nossa vida e o nosso ser mais profundo.
Aqueles que se detém
meramente no reino do pensamento, permanecem prisioneiros dos seus pensamentos,
assim como aqueles que vivem em meio a intuições mais ou menos vagas tornam-se
prisioneiros de seus momentâneos sentimentos e emoções.
Entretanto, aqueles que
podem coordenar e harmonizar seus pensamentos e suas intuições fazem o melhor
de ambos: eles desfrutam da liberdade de uma mente intuitiva, desembaraçada de
conceitos e preconceitos. Eles tem a satisfação criativa de construir os
elementos da experiência intuitiva no sublime edifício de uma visão mundial
oniabrangente e de desenvolver uma filosofia da vida que é continuamente
expansiva em sua perspectiva até que acha a sua perfeição no estado de perfeita
iluminação.
Assim, não há necessidade
alguma de negar o nosso intelecto ou de suprimir o livre fluxo de nossos
pensamentos e a faculdade do raciocínio desde que sejamos conscientes das
limitações inerentes em todo o pensamento discursivo e desde que usemos o nosso
intelecto dentro de seu âmbito. A faculdade do raciocínio é um valioso
instrumento da mente humana. Sem as suas qualidades de direcionamento,
orientação, clarificação e estabilização, a nossa vida se tornaria um pesadelo
caótico.
A ideia de que já somos
perfeitos, porque o universo todo está presente dentro de nós, e que apenas
temos que suprimir o malvado intelecto a fim de permitir que a nossa perfeição
chegue a luz e se revele, é uma das maiores falácias daqueles que vêem
perfeição somente na unidade indiferenciada do absoluto brahman e que tentam atingir a liberação ou a restauração do estado
original de absoluta unidade através da depreciação e negação da
individualidade e da consciência individual. É estranho que possa parecer, é
exatamente nessa teoria que o pensamento abstrato lógico celebra o seu mais
alto triunfo.
Se realmente queremos
confiar em nossa natureza mais interna, e, além disso, na natureza do universo
do qual surgimos, nós não podemos ao mesmo tempo duvidar do pleno significado
de nossa individualização, dado que ela é o produto daquela presumida unidade e
perfeição primordiais. Nem a unidade absoluta nem a absoluta diferenciação
podem constituir um ideal significativo, nem pode a perfeição ser identificada
seja com um impessoal brahman ou com
a limitada consciência egocêntrica de uma personalidade que existe separada. Em
vez disso é no meio entre esses dois
extremos onde o indivíduo se torna o foco vivo de uma consciência
universal.
_____________________
(*) Extraído do
livro “Meditação Criativa e Consciência Multi-Dimensional” (tradução de Alcyr Anisio
Ferreira).
(**) A intuição é também chamada de "razão pura".
Um comentário:
Sendo o intelecto resultante do desenvolvimento da mente concreta, comparativa - que usamos para o "entendimento das coisas" - tem lugar fundamental em nossas operações do dia a dia. Seu efeito deletério ocorre quando usado nos relacionamentos (sendo a base do julgamento do outro) e, pior ainda, quando aplicado na tentativa de "entender Deus", como se o finito pudesse abarcar o infinito.
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