quinta-feira, 26 de abril de 2012

O caminho da intuição e da universalidade



Lama Anagarika Govinda (*)
A meditação sempre foi o principal requisito da doutrina Budista de liberação. Entretanto, quanto mais as mais diferentes técnicas de meditação, suas definições psicológicas e seus princípios metafísicos e filosóficos eram explicados, classificados, e fixados em comentários e sub comentários, mais as práticas de meditação eram negligenciadas e sufocadas por discussões teóricas, regras e regulamentos morais, e infindáveis recitações de textos sagrados. 

A reação foi uma revolta contra as escrituras e a erudição e um retorno a uma experiência mais direta e espontânea. Ao pedantismo de um pensamento escolástico e de lógica intelectual opôs-se a ferramenta do paradoxo que, qual uma afiada espada, cortou os nós de problemas artificialmente criados com a velocidade do relâmpago o que nos dá um relance da verdadeira natureza das coisas. O paradoxo, entretanto, é uma espada de dois gumes. Tão logo ele se torna algo rotineiro, destrói a própria coisa que ajudou a revelar. A força de um paradoxo, como a de uma espada, está no inesperado e na velocidade com que ela é manejada; por outro lado não é melhor do que a faca nas mãos de um açougueiro. 

Um fino exemplo é a estória de dois monges chineses que mantinham uma disputa a respeito de uma bandeira movendo-se ao vento. Um sustentava que a bandeira estava se movendo; o outro de que era o vento que a movia. Hui – Neng, o Sexto Patriarca na China, que ouvia por acaso a discussão, disse: “Nem o vento nem a bandeira estão se movendo, é a mente de vocês que está se movendo.” Mas Mummon, um Patriarca Japonês do século XIII, não satisfeito com esta resposta, foi um passo além e disse: “Nem o vento, nem a bandeira, nem a mente estão se movendo,” referindo-se ao princípio essencial de sunyata, no qual não há nem o ir nem o vir, mas no qual ambos os aspectos subjetivos e objetivos da realidade estão incluídos.

Esta realidade além dos opostos, contudo, não deve ser separada ou abstraída de seus expoentes; a transitoriedade não deve ser separada da eternidade. A mais perfeita auto expressão individual é a descrição mais objetiva do mundo. O maior dos artistas é aquele que expressa o que é sentido por todos. Mas como é que ele faz isto? Sendo mais subjetivo do que outros. Quanto mais ele expressa a si mesmo, isto é o seu ser mais íntimo, mais próximo ele se mostra aos outros. A nossa natureza real não é o nosso ego limitado e imaginário; é o vasto e oniabrangente espaço, tão intangível quanto vazio. É sunyata em seu sentido mais profundo. O segredo da arte é que revela o supra individual através da individualidade, o “não-ser” através do “ser”, o objeto através do sujeito. A arte em si é uma espécie de paradoxo, e é por isso que todas as escolas de meditação do Budismo no Extremo Oriente, como no Tibet e regiões vizinhas, dão a ele esta importância tão grande. 

A MENSAGEM DO SEXTO PATRIARCA

Como um exemplo do uso ideal de paradoxos, podemos mencionar o Sutra do Sexto Patriarca. Ele foi bem sucedido em expressar a atitude espiritual do Zen de uma maneira que nem ofende o nosso bom senso nem tenta fazer do bom senso a medida de todas as coisas. O leitor desta escritura se situa, desde o início, na reta atmosfera que o capacita a colocar-se acima do plano de sua consciência diária, numa espontânea participação na realidade de um nível mais alto de consciência. A figura do Sexto Patriarca impressiona pela sua espontaneidade natural, que deveria ser inerente a cada ser humano e com a qual o leitor sem preconceitos pode facilmente se identificar. Deste modo ele é capaz de participar internamente nas experiências e ensinamentos do Sexto Patriarca, cuja própria vida tornou-se o símbolo máximo do Budismo Zen.

O noviço de Kwang-tung, cuja mente não estava ainda sobrecarregada por qualquer problema filosófico, penetrou espontaneamente no centro da vida espiritual: a experiência do Budado. Essa experiência não depende de regras monásticas e erudição, de ascetismo e virtuosidade, de conhecimento livresco e da recitação de textos sagrados, mas tão somente da realização do espírito vivo dentro de nós. 

O Sexto Patriarca atingiu um estado de espontânea iluminação sem ter tido qualquer educação formal e escolar, embora por outro lado foi, ao ouvir a recitação do Sutra Diamante que seu interesse foi despertado e sua visão espiritual foi aberta. A experiência espontânea, portanto, pode muito bem ser o produto de uma antiga tradição consagrada, se esta tradição contém símbolos de uma realidade supramental (a psicologia moderna os chamaria de “símbolos arquetípicos”) ou formulações que levam a mente além do círculo estreito do raciocínio mundano. No choque inesperado entre uma mente sensitiva e tais símbolos e formulações, as portas da percepção interna são subitamente abertas e o indivíduo se capacita a identificar-se com essa realidade supramental contida naquelas formulações e símbolos.

O Sexto Patriarca veio de uma família boa, porém empobrecida de Kwang-tung. Um dia quando ele estava vendendo madeira de fogão no mercado de Kanton, ele ouviu a recitação do Sutra Diamante, e isto despertou uma resposta tão profunda nele que ele decidiu entrar no monastério da Escola Zen, cujo abade era o Quinto Patriarca. Ele tornou-se um noviço ali, e nessa condição, foi dado a ele o trabalho mais humilde no estábulo e cozinha do monastério. Um dia o abade convocou todos os seus discípulos a fim de escolher um sucessor. Como ele desejava ter certeza de escolher um digno sucessor, alguém que tivesse não apenas compreendido, mas realizado a mensagem do Zen, ele pediu aos monges reunidos para escreverem uma estrofe a respeito da natureza mais íntima da mente.
  
Entretanto, ninguém ousou apresentar-se, com a exceção do erudito Shin-shau, a quem todos já consideravam o sucessor do Quinto Patriarca. Ele escreveu seu verso na parede do corredor, a fim de descobrir a opinião do Patriarca e anunciar a sua autoria apenas se o Patriarca ficasse satisfeito com verso. O Patriarca, entretanto, embora apreciasse as palavras, pediu a Shin-shau que meditasse sobre elas durante alguns dias e então escrevesse outra estrofe que mostrasse que o seu autor tinha passado pelo “portal da iluminação”- em outras palavras, que ele realmente tivesse experenciado aquilo que tinha escrito. 

Dois dias mais tarde aconteceu que um jovem, que passava pelo quarto no qual o jovem noviço de Kwang-tung estava descascando arroz, recitou em voz alta a estrofe do Shin-shau. O noviço, logo em seguida, foi para o corredor onde Shin-shau tinha escrito o seu verso e pediu a um visitante, que passava por ali, para ler para ele o verso, dado que ele não podia ler nem escrever. Depois que o visitante leu em voz alta o verso para ele, o noviço disse que ele também tinha composto uma estrofe, e pediu ao visitante que a escrevesse abaixo do verso de Shin-shau.

Quando os outros monges viram a nova estrofe, eles se maravilharam, e quando souberam quem o tinha composto, disseram entre si: “Como foi possível que permitimos que uma pessoa tão iluminada trabalhasse para nós. O Patriarca, entretanto, temendo a inveja dos outros monges, que poderiam magoar o noviço se soubessem que ele iria se tornar o sucessor do Patriarca, apagou a estrofe com uma das suas sandálias de palha e pediu ao jovem que viesse a noite para se encontrar com ele. Quando todos no monastério estavam em profundo sono, ele deu ao noviço a insígnia de seu futuro cargo e tornou-o o Sexto Patriarca. Ele ordenou então ao noviço para sair de imediato do monastério e retornar somente quando ele, o Quinto Patriarca, tivesse falecido. O noviço procedeu como lhe foi pedido, e quando ele retornou com os mantos do cargo, ele foi reconhecido como o Sexto Patriarca com o nome de Wei-lang.

Consideremos agora as estrofes de Shin-shau e a do Sexto Patriarca, porque elas nos dão uma percepção valiosa da atitude mental da Escola Zen. A estrofe de Shin-shau diz:
                            Nosso corpo é como uma árvore de iluminação,
                            Nossa mente é como um espelho limpo;
                            De hora a hora precisa ser limpo,
                            De modo que nenhuma poeira se ajunte nele.

Este verso mostra não apenas uma preocupação pedante pela preservação da pureza do “espelho interno”, a Mente Original (que de qualquer modo está além da “pureza” e “impureza”), mas, além disso, mostra que o autor desta estrofe não fala a partir de sua própria experiência, mas somente como um homem erudito, porque o verso está baseado em uma expressão do Svetasvatara Upanishad: 
                                Assim como um espelho,
                                Que foi coberto com poeira,
                                Brilha como fogo, se for limpo,
                                Da mesma maneira, aquele que compreendeu a natureza da alma,
                                Atinge o alvo e liberta-se da aflição. 

Assim Shin-shau estava apenas repetindo a exposição do Upanishad, sem ter experenciado a realidade da Mente Original, enquanto que o jovem noviço que tinha captado a quintaessência do Sutra Diamante em um ato de percepção direta, tinha experenciado naquele momento a verdadeira natureza da mente. Isto é mostrado pela sua estrofe, que ao mesmo tempo rejeita a de Shin-shau ao revelar o ponto de vista Budista como é compreendido pelos Mestres do Zen:
                              Nosso corpo não é uma árvore de modo algum,
                              Nem é a mente um estojo de espelhos.
                              Quando tudo está vazio,
                              Onde poderia a poeira acumular-se? 

A Mente Original, compreendida como a “Mente de Buda” ou o princípio de bodhi, o anseio pela iluminação, que é uma propriedade latente de cada consciência, é não apenas um reflexo do universo – algo que “espelha” o universo – mas é a própria realidade universal. Para o intelecto limitado isso pode aparecer apenas como uma espécie de vacuidade metafísica, a ausência de todas as qualidades e possibilidades de definição. Bodhi é, portanto, não algo que se originou ou cresceu como uma árvore; nem é a mente um mero espelho que só reflete a realidade numa capacidade secundária. Dado que a mente em si mesma é a vacuidade que a tudo abrange (sunyata), onde poderia se ajuntar de qualquer modo a poeira? “A essência da mente é grande, dizemos, porque ela abrange todas as coisas, porque todas as coisas são de nossa natureza.” Assim não é uma questão de melhorar ou de limpar a nossa mente, mas a de se tornar consciente de sua universalidade.

O que podemos melhorar é nosso intelecto, a nossa consciência individual limitada. Isto, entretanto, jamais pode nos levar além de seus próprios limites, porque permanecemos no círculo estritamente circunscrito de suas leis inerentes (de tempo e espaço, de lógica e causalidade). Somente a ultrapassagem de nossas limitações, do abandono de todos aqueles conteúdos que nos aprisionam àquelas leis, pode nos dar a experiência da totalidade do espírito e a realização de sua verdadeira natureza, que é o que chamamos de Iluminação.

A verdadeira natureza de nossa mente abrange tudo que vive. O voto do Bodhisattva de libertar todos os seres vivos não é, portanto tão presunçoso como parece. Não é nascido da ilusão de que um homem mortal pode estabelecer-se como salvador de todos os seres ou o redentor de todo o mundo, mas é um resultado da percepção de que somente no estado de iluminação seremos capazes de nos tornar unos com tudo o que vive. Neste ato de unificação nós libertamos a nós mesmos e a todos os seres viventes, que estão potencialmente presentes e participam da natureza de nossa mente, não apenas isso, que são parte de nossa mente no sentido mais profundo.

Esta é a razão porque, de acordo com os ensinamentos do Mahayana, a liberação em relação aos nossos sofrimentos, a mera extinção da vontade de viver e de todos os desejos, é considerada como insuficiente, e porque o empenhar-se na busca da perfeita iluminação (samyak-sambodhi) é considerada o único digno objetivo de um seguidor do Buda. Enquanto desprezarmos o mundo e tentarmos simplesmente escapar dele, nós nem o superamos nem ganhamos mestria nele e estamos longe de ter atingido a liberação. Portanto é dito: “Este mundo é o mundo de Buda dentro do qual a iluminação pode ser achada. Buscar a iluminação separando-nos do mundo é tão tolo como buscar chifre em lebre”. Porque: “Aquele que trilha sinceramente o caminho do mundo, não verá as faltas do mundo”.

De modo semelhante não deveríamos imaginar que pela supressão do pensamento ou de nossas faculdades intelectuais, podemos atingir a iluminação. “É um grande engano suprimir todo o pensamento”, diz Wei Lang, o Sexto Patriarca. Zen é o caminho para superar as limitações de nossa atitude intelectual. Mas primeiro temos que ter desenvolvido o nosso intelecto, nossa capacidade de pensar, de raciocinar e discernir, antes que sejamos capazes de apreciar o Zen. Se nós não temos intelecto algum, isto é, se nunca o desenvolvemos e estabelecemos a mestria sobre ele, nós não poderíamos superá-lo ou ultrapassá-lo; somente quando temos mestria sobre ele, é realmente nosso. O intelecto é tão necessário para a superação da mera emocionalidade e confusão quanto a intuição é necessária para a superação das limitações do intelecto e seus julgamentos.

A razão, a mais alta propriedade do intelecto, é o que guia o nosso pensamento intencional. As finalidades, contudo, são limitadas; e, portanto a razão só pode operar naquilo que é limitado. Somente a sabedoria (prajna) pode aceitar e intuitivamente compreender o ilimitado, o atemporal e o infinito, ao renunciar às explicações e ao reconhecer o mistério, que somente pode ser sentido, experenciado, e finalmente realizado em vida – e que jamais pode ser definido. A sabedoria tem suas raízes na experiência, na realização de nosso ser mais íntimo. A razão tem suas raízes no pensamento. Entretanto, a sabedoria não desprezará tanto o pensamento como a razão, mas os usará em seu próprio âmbito, ou seja, no âmbito da ação intencional, como também para a busca da ciência e para a coordenação de nossas impressões sensoriais, percepções, sensações, sentimentos, e emoções, tudo em um conjunto significativo.

Aqui o lado criativo de nosso pensamento exerce a sua ação, convertendo a matéria prima da experiência na percepção de um mundo razoável. Quão grande ou pequeno este mundo é, depende da faculdade criativa da mente do indivíduo. A mente pequena vive no mundo de seus efêmeros quereres e desejos, a grande mente na infinidade do universo e na constante percepção daquele insondável mistério que dá profundidade e amplitude a sua vida e assim impede que ele confunda o seu mundo sensorial com a realidade última. Entretanto, aquele que penetrou até os limites do pensamento, ousa saltar na grande vacuidade, o campo primordial de seu ser ilimitado.

RAZÃO E INTUIÇÃO (**)

Se a intuição não acha ao mesmo tempo uma clara expressão em nosso pensamento, não pode ter nenhuma influência real em nossa vida, porque nenhuma força pode agir a menos que esteja formada e direcionada. Por outro lado, pensamentos e verdades que foram apenas desenvolvidos no plano intelectual devem ser confirmados e realizados pela experiência direta caso eles tenham que ter o poder de transformar a nossa vida e o nosso ser mais profundo.

Aqueles que se detém meramente no reino do pensamento, permanecem prisioneiros dos seus pensamentos, assim como aqueles que vivem em meio a intuições mais ou menos vagas tornam-se prisioneiros de seus momentâneos sentimentos e emoções.

Entretanto, aqueles que podem coordenar e harmonizar seus pensamentos e suas intuições fazem o melhor de ambos: eles desfrutam da liberdade de uma mente intuitiva, desembaraçada de conceitos e preconceitos. Eles tem a satisfação criativa de construir os elementos da experiência intuitiva no sublime edifício de uma visão mundial oniabrangente e de desenvolver uma filosofia da vida que é continuamente expansiva em sua perspectiva até que acha a sua perfeição no estado de perfeita iluminação.

Assim, não há necessidade alguma de negar o nosso intelecto ou de suprimir o livre fluxo de nossos pensamentos e a faculdade do raciocínio desde que sejamos conscientes das limitações inerentes em todo o pensamento discursivo e desde que usemos o nosso intelecto dentro de seu âmbito. A faculdade do raciocínio é um valioso instrumento da mente humana. Sem as suas qualidades de direcionamento, orientação, clarificação e estabilização, a nossa vida se tornaria um pesadelo caótico.

A ideia de que já somos perfeitos, porque o universo todo está presente dentro de nós, e que apenas temos que suprimir o malvado intelecto a fim de permitir que a nossa perfeição chegue a luz e se revele, é uma das maiores falácias daqueles que vêem perfeição somente na unidade indiferenciada do absoluto brahman e que tentam atingir a liberação ou a restauração do estado original de absoluta unidade através da depreciação e negação da individualidade e da consciência individual. É estranho que possa parecer, é exatamente nessa teoria que o pensamento abstrato lógico celebra o seu mais alto triunfo.

Se realmente queremos confiar em nossa natureza mais interna, e, além disso, na natureza do universo do qual surgimos, nós não podemos ao mesmo tempo duvidar do pleno significado de nossa individualização, dado que ela é o produto daquela presumida unidade e perfeição primordiais. Nem a unidade absoluta nem a absoluta diferenciação podem constituir um ideal significativo, nem pode a perfeição ser identificada seja com um impessoal brahman ou com a limitada consciência egocêntrica de uma personalidade que existe separada. Em vez disso é no meio entre esses dois extremos onde o indivíduo se torna o foco vivo de uma consciência universal. 
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(*) Extraído do livro “Meditação Criativa e Consciência Multi-Dimensional” (tradução de Alcyr Anisio Ferreira).
(**) A intuição é também chamada de "razão pura".

Um comentário:

Walter da Silva Barbosa disse...

Sendo o intelecto resultante do desenvolvimento da mente concreta, comparativa - que usamos para o "entendimento das coisas" - tem lugar fundamental em nossas operações do dia a dia. Seu efeito deletério ocorre quando usado nos relacionamentos (sendo a base do julgamento do outro) e, pior ainda, quando aplicado na tentativa de "entender Deus", como se o finito pudesse abarcar o infinito.