quinta-feira, 26 de abril de 2012

Compaixão: quem não necessita dela? (II)


Walter S. Barbosa[1]
Segundo o Dalai Lama, “O amor e compaixão nutridos por seus amigos, esposa e filhos, não são verdadeiros em sua essência. São apego, e esse tipo de amor não pode ser infinito". Ou seja, tais amores têm começo e têm fim.

Apego é o sentimento de retenção focado nos patrimônios do ego, inclusive aquele que costumamos chamar de amor. Sua motivação maior é a garantia de segurança, de continuidade. E, como enfatiza Rohit Mehta[2], em concordância com o Dalai Lama, “Se o amor tem motivo, então não é amor algum”.

Acostumados a sentir e definir o amor com base na estatura humana – baseando-se, na melhor das hipóteses, em trocas justas – como assimilar a proposta do amor sem motivos, aquele que se manifesta espontaneamente, sem preocupação com resultados?

Recentemente assisti a uma reportagem na qual voluntários se dedicavam a crianças com deficiências múltiplas, aparentemente sem possibilidade de recuperação. A dependência era total. O quadro era pungente.

Quando alguém se desdobra no trabalho junto a crianças saudáveis, sua recompensa maior decerto é o avanço cognitivo e comportamental dos jovens pupilos. No caso daqueles voluntários, o que poderiam eles vislumbrar como retribuição ao seu esforço? Apesar da situação que me parecia tão sem esperança, sua tarefa era executada nos mínimos detalhes. Se havia ali alguma troca, ela só poderia estar no nível da alma.

Nas diversas áreas onde a miséria e o abandono se apresentam – e estão em toda parte – outros heróis se curvam diante da dor, tentando reduzi-la sem se importarem consigo mesmos. Na convivência familiar, porém, nosso amor costuma basear-se em carências pessoais. Daí porque a compaixão acaso existente nesses laços também se revela como apego. Seu objetivo é quase sempre a continuidade do conforto.

O relacionamento é a base do autoconhecimento, da expansão da consciência. Se vivido, porém conforme as regras comerciais apenas no nível do “dar para receber” (ainda que muito sutil), o que avançamos além delas? Há um nível de convivência que pode romper essa regra, levando o relacionamento à sua maior dádiva: desenvolver nosso autoesquecimento, atingindo as valiosas propriedades do ego.

Já se disse que amar é querer o bem do outro. Será que isso é fazer necessariamente o que o outro quer, como tática óbvia para esticar a relação, “evitar” conflitos, dar continuidade ao conforto? Em alguns casos, dizer não pode ser nossa oferta real de amor, pondo em questão os apegos mais profundos (podem até ser “doces”, mas também abrigar o abuso ou a tirania).

Noutras vezes, o autoesquecimento pode exigir a renúncia a um dos nossos patrimônios mais caros: a nossa razão, algo que defendemos com unhas e dentes, entrando nos domínios do “amor-próprio”. Se para o ego tal renúncia é uma pequena morte, para o Ser é expansão da vida, da consciência (ela cresce na medida em que nosso lado inferior diminui), ensejando também o exercício legítimo da compaixão nas relações.

Pode-se objetar: “E se minha razão for verdadeira? Tal renúncia não dará uma falsa segurança e, ainda, um reforço indevido ao ego do outro?” Convidamos você a refletir conosco a respeito, na continuação deste fascinante tema[3].


[1] Membro da Sociedade Teosófica e da Universidade Livre para a Consciência.
[2] MEHTA, Rohit. “O Chamado dos Upanishades”, Editora Teosófica.
[3] Este e outros textos encontram-se abertos aos seus comentários em www.uniconsportal.org.br.

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