Walter S. Barbosa(*)
Freqüentemente a vida indígena
nos é apresentada como o ideal comunitário na prática. Será porque são
inocentes criaturas, alheias aos vícios da civilização, onde a disputa, o ardil
e a cobiça são acrescentados ao instinto que herdamos do reino animal? Um pouco
disso, talvez. Deve influenciar também o fato de obterem a sobrevivência na
base do “Um por todos e todos por um”.
No Festival Mundial da Paz, em
Florianópolis (2006), a jornalista e filósofa Lia Diskin relatou o caso de uma
tribo na África chamada Ubuntu, como segue:
“Um antropólogo estava estudando
os usos e costumes de determinada tribo e, quando terminou seu trabalho, teve
que esperar pelo transporte que o levaria até o aeroporto de volta pra casa.
Sobrava muito tempo, mas ele não queria catequizar os membros da tribo; então,
propôs uma brincadeira para as crianças, que achou ser inofensiva. Comprou uma
porção de doces e guloseimas na cidade, colocou tudo num cesto bem bonito, com
belo laço de fita, e colocou debaixo de uma árvore. Aí chamou as crianças e combinou
que quando ele dissesse “Já” deveriam sair correndo até o cesto. A que chegasse
primeiro ganharia todos os doces que estavam lá dentro. As crianças se
posicionaram na linha demarcatória que ele desenhou no chão e esperaram pelo
sinal combinado. Quando ele disse “Já”, instantaneamente todas as crianças se
deram as mãos e saíram correndo em direção à árvore com o cesto. Chegando lá,
começaram a distribuir os doces entre si e comeram felizes”.
O que achou desse desfecho o
antropólogo? À semelhança do que ocorre nas comunidades fechadas dos “homens
brancos”, tudo que os nativos obtêm da mata, dos rios ou do cultivo embrionário
da terra é repartido igualmente entre todos. A proximidade da floresta é
garantia de que amanhã tem mais. Ocorreria
o mesmo comportamento em relação a algo especial que pudesse pertencer a apenas
um? Lançada em 1980 e tendo por inspiração outra aldeia africana, a excelente
comédia “Os deuses devem estar loucos” sugere a resposta:
Ao sobrevoar a tribo de
bosquímanos onde morava Xixo (personagem central), no deserto do Kalahari, foi jogada
do avião uma garrafa vazia. Os nativos logo descobriram para ela muitas
utilidades – como socar alimentos e esticar peles – sendo considerada um
presente dos deuses que cruzaram o céu. Mas o que ocorreu em seguida? Todos querendo
usá-la ao mesmo tempo, começaram a brigar por sua posse, desaparecendo a antiga
concórdia. O presente se tornou maldição, obrigando Xixo a ganhar o mundo com
uma trouxinha nas costas, a fim de devolver a garrafa aos deuses.
Em nosso dia-a-dia, bombardeia-nos
constantemente a propaganda de utilidades duvidosas, apresentadas como irresistíveis
ofertas pelos “deuses” que alimentam o consumismo no mundo. Ao invés de
proceder como Xixo – descartando o que gera discórdia ou inveja – competimos e
nos sacrificamos para obtenção dessas “garrafas vazias”, fazendo disso a razão
de viver. Acabamos morrendo, no entanto, para aquilo que importa: a beleza do
esforço cooperativo, o amor e a paz.
Quanto ao antropólogo, surpreso
com o final da competição proposta às crianças, perguntou-lhes por que tinham
ido todas juntas se uma só poderia vencer a corrida, ganhando muito mais doces.
Elas responderam: “Ubuntu, tio. Como uma de nós poderia ficar feliz se todas as
outras estivessem tristes?”.
Segundo a narrativa, ubuntu
significa “Sou quem sou porque somos
todos nós!".
(*) Membro da Sociedade Teosófica e da Universidade Livre para a
Consciência.
Um comentário:
Segundo o livro: O Direito Internacional da Pobreza - um discurso emergente, de Lucy Williams, refere Justice Lanca sobre ubuntu na página 231 o seguinte: « O conceito tem alguma pertinência para os valores que devemos sustentar. É uma cultura que põe a tónica na comunidade e na interdependência dos membros da comunidade. Reconhece o estatuto da pessoa como um ser humano, com direito ao respeito sem condições, à dignidade, à estima e à aceitação dos membros da comunidade a que a pessoa pertence.» e acrescenta: « Ainda mais importante, ubuntu regula o exercício dos direitos pela ênfase que põe na partilha e na corresponsabilidade e no gozo mútuo dos direitos de todos.» Isto num contexto da Africa do Sul!!!
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