terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

"Tudo que resta nos dias finais é amor"


Walter da Silva Barbosa[1]
Vivendo os últimos dias no corpo físico, para os pacientes da enfermeira Bronnie Ware não havia mais a preocupação com posses, ou o desejo de agradar os outros a fim de obter recompensas. No aqui e agora enfim descoberto, restava apenas o anseio de recolher no coração as dádivas do “abc” do amor – o carinho dos parentes e amigos – manifestando o pesar de terem dado pouca atenção a esse lado da existência humana, onde a consciência obtém os frutos mais significativos e mais doces.

Aproximando-se o fim, o ego perde a majestade. Habitualmente nutrindo-se das diferenças criadas pela mente – em busca de mais destaque – ele se encolhe nesse momento especial querendo reencontrar as afinidades do coração. Descobre então que o único bem de valor, secundarizado no tropel da vida, foi justamente o que conseguiu cultivar à margem do interesse mesquinho, da esperteza disfarçada de inteligência, da possessividade com rótulo de afeto.

Um dos papéis extraordinários do crepúsculo que antecede o abandono do corpo – iniciando com a velhice – é ajudar-nos a abrir os olhos para a vida. Muitos naturalmente ainda se debatem por muito tempo, rejeitando a lição. Esticando as peles ou recorrendo a afrodisíacos, procuram deter a fuga da beleza aparente, quando poderiam despertar para as alegrias perenes da alma. No olhar de alguns idosos pode-se apreciar essa mudança, irradiando serenidade e aceitação, a certeza de uma plenitude que só existe por não depender da fragilidade da carne.

“A sabedoria de viver é morrer um pouco a cada dia” diz Eckhart Tolle[2]. Que morte é essa? Da idéia de separatividade, que alimenta o medo, que se opõe ao amor.

Obviamente, separatividade e amor não combinam. Um tende a matar o outro, significando a essência do conflito que carregamos ao longo da vida. Ansiamos pelo amor, pela entrega, que representa – na impermanência de tudo – a única segurança possível pela renúncia à própria segurança. Simultaneamente tememos o amor, dando força àquilo que nega sua expressão: nosso pequenino eu mental, o ego, vivendo em castelos edificados com areia retirada de sua própria sepultura.

Na dinâmica dos casais o anseio de união, de cumplicidade, entra em choque com o desejo de manter a integridade do pequeno eu. E com ele, o direito de não ser o outro, de ter uma história da qual cada um pode se orgulhar, revivendo-a mentalmente ou contando aos outros. Esforço inútil. Apenas nos iguala à multidão – o rebanho da inconsciência, a manutenção do medo, a negação do amor.

Amor, porém, “é tudo que resta nos dias finais”. Na essência, ele significa justamente a capacidade de ser o outro. Aquilo que, como verdadeira comunhão, sobrou das amizades ou do sexo na vida do casal. Na educação dos filhos, aquilo que foi além da preocupação instintiva com sucesso, roupa ou comida, valorizando a dimensão do Ser. A ausência dessa dimensão – como atenção verdadeira no processo educativo – pode estar na base da rebeldia e frustração dos jovens, não se vendo compreendidos em sua verdadeira natureza, como lembra Eckhart Tolle.

Nos ensinamentos de Ramakrishna consta que certa vez, diante de uma pessoa chicoteada, as marcas do chicote surgiram no corpo dele. Esse é o amor elevado à potência da sublimidade. Não podendo igualá-lo, que consigamos ao menos tê-lo como inspiração para as atitudes do dia a dia, anulando ou diminuindo arrependimentos na proximidade do fim (até porque, somente o corpo está sujeito a esse destino).


[1] Membro da Sociedade Teosófica e da Universidade Livre para a Consciência-UNICONS.
[2] “O Despertar de uma Nova Consciência”, Editora Sextante.

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