quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Ira, luxúria e cobiça - os três grilhões

Walter da Silva Barbosa[1]

Grilhão é aquilo que nos prende. Uma corrente em nossas pernas é um grilhão, assim como hábitos arraigados, dependências (inclusive a afetiva) e drogas de qualquer tipo, aceitas ou não pela sociedade (frequentemente o lucro importa mais que a vida).

Os “três grilhões” são assim chamados no Bhagavad-Gita (Canção do Senhor) pelo destaque que desfrutam em nosso dia a dia, aparecendo também entre os “sete pecados capitais” da tradição cristã. Quem se lembra deles? Talvez poucos, numa época em que – por comodismo ou descrédito da figura do pecado – vício e virtude são tomados um pelo outro. Ajudando a lembrá-los, associamos seus nomes à palavra “pocilga” (casinha de porcos): Preguiça, Orgulho, Cobiça, Ira, Luxúria, Gula, Avareza.

Todo pecado que cometemos – ou carregamos, como vício de comportamento calcado na estrutura energética de nossos corpos – se baseia em nossa inconsciência atual, contribuindo também para aumentá-la na repetição da mesma energia.

Há uma classificação interessante desses pecados, abrangendo físico, emoção e mente. Enquanto a gula e a preguiça ligam-se ao físico, o orgulho e a avareza são mentais. Por sua vez, os três acima – ira, luxúria, cobiça – afinizam-se com a emoção, agindo em nosso “corpo de desejos” (astral, emocional).Daí fica mais fácil entender a força do grilhão enfatizado no Bhagavad-Gita, tendo como figura central o desejo. É o próprio esteio da Criação Universal. Não obstante, ele também abre caminho ao pralaya, ajudando a dissolver a forma ilusória na medida em que o revertemos para uma vibração mais alta, passando a desejar a Luz, o retorno à “Casa do Pai”.

No caminho do ascetismo o desejo é sempre apontado como causa do sofrimento. Refletindo algo maior, com que às vezes se confunde – a vontade – ele gera em nós um íntimo anseio de complementação. Identificados, porém, com a matéria, colocamos tal anseio nas guloseimas de todo tipo (que só a vontade pode transformar), buscando a complementação nas posses. Aí mergulhamos de cabeça na prisão material. Isso, entretanto, é uma decorrência do processo evolutivo como um todo. Temos que provar o máximo da escuridão a fim de ansiar pela Luz.

Cosmicamente, o desejo nasceu no exato instante em que tudo deixou de ser Unidade ao surgir o universo: Deus (o Manifesto) dividido em seus múltiplos pedaços, buscando reunir-se outra vez. É a nossa angústia, a nossa busca. Então, o "veneno" do desejo carrega em si o próprio antídoto.

A ira é um grilhão sério, um dos maiores sustentos do Carma por sua onipresença em nosso dia a dia e efeitos que desencadeia.  Ficamos irados sempre que nosso desejo é ameaçado, quando algo ou alguém se coloca entre nós e o objeto de nossa cobiça. A ira busca proteger tudo que afeta o ego e, portanto, suas posses.

Luxúria é o desejo focalizado ao extremo na sexualidade, a mente convertendo em sexo toda intenção, todo olhar. A luxúria perverte tudo aquilo que toca. Podendo elevar ou degradar, mais frequentemente a energia sexual nos degrada – em seu mau uso – pela ignorância quanto à sua real natureza. Finalmente, a cobiça – casando-se muito bem com a ira (que a defende) e a luxúria (que a realiza) – é o próprio campo do desejo. Aí estão os três grilhões apoiando-se mutuamente.

Segundo Mehta[2], yoga – significando união – é “a viagem da inconsciência para a consciência”, tendo a meditação como suporte. Auxiliada pela devoção, torna-se a via mais rápida. Na essência, porém, todo caminho que gera união – ligando o terreno ao divino – faz o trabalho do yoga. Na medida em que percebemos o efeito real dos pecados (prisão, sofrimento, mas não “danação eterna”), nosso desejo se volta para esses caminhos de libertação. Para chegar a esta, porém, só pelo exercício da vontade.

Como divina contraparte do desejo, a vontade o sublima em valores mais altos até extinguir os grilhões que nos prendem neste mundo, incluindo o próprio desejo. Perdemos alguma coisa? Não. Criador de gozos efêmeros, fantasias e dependências, ao partir, o desejo nos presenteia com o gozo maior – livre das limitações do tempo – que nos aguarda na plenitude do nirvana, ou Autorrealização. Para Ramana Maharshi, a Paz Suprema. Essa é a união que buscamos.

[1] Membro da Sociedade Teosófica e da Universidade Livre para a Consciência.
[2] MEHTA, Rohit. “Yoga, a arte da integração”, Editora Teosófica.

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