quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Homem e mulher: a parelha consciencial


Walter S Barbosa[1]
Por que nos relacionamos? Segundo os sociólogos, vivemos juntos para facilitar a existência neste mundo, dividindo esforços na produção de utilidades. Relacionamento é só isso? Bem mais. Na prática, contudo, vivemos juntos mas “ilhados” em nós mesmos, de maneira competitiva até no encontro mais íntimo de todos: entre o homem e a mulher.

Onde está a matriz da sociedade? Sem dúvida, na família, com seus pilares “macho e fêmea”. Aí se estabelecem as condições ideais – material, biológica, psíquica – para a vinda de uma nova consciência a este mundo, o filho. Além da ligação cármica, ele traz as características genéticas do pai e da mãe, assim como o Filho é encarnação de Deus, o todo poderoso Pai-Mãe. Essa idéia encontra-se na base da “Santíssima Trindade” cristã, assim como na egípcia (Osíris, Ísis e Hórus) e em outras mais.

Cumprindo os desígnios da natureza sob a força dos hormônios, lado a lado o homem e a mulher vão desenvolver a consciência do Andrógino Divino, latente nos dois.

Partilhando energias, anseios, vibrações, a mulher trabalha em si o Poder do Amor (realização no coração), estimulando-o no parceiro, enquanto o homem trabalha o Poder do Pensamento (realização no intelecto), estimulando-o na mulher. Se conscientes disso, colaboram entre si – em lugar de competir ou criticar – caminhando para a realização final no Eu, e não na “relação”, nas posses ou na família (meros suportes para chegar ao Eu).

Quanto ao filho, obterá o conhecimento inicial de sua própria identidade nos pilares macho-fêmea. O que ocorrerá se esses pilares não estiverem lá, ou forem distorcidos?

A realização feminina no coração desenvolve a sensibilidade, o conhecimento do outro. A realização do homem no intelecto desenvolve a razão, o conhecimento das coisas. Desenvolver é palavra-chave, significando tirar o envoltório que esconde algo, provavelmente existindo muitos homens e mulheres já com essas qualidades no mundo. O objetivo final é sempre o conhecimento do Eu, onde o desenvolvimento total do Ser leva ao supremo Poder da Vontade, superando fraquezas e possibilitando-nos agir em todos os planos.

O Eu é Deus, a Consciência Pura, dividida em espírito e matéria, base da relação macho-fêmea. Daí nosso anseio de “completude”, buscando fora o que está dentro. Ao encarnar no sexo atual, a missão é aprofundar a lição desse corpo. Negá-lo é como voltar ao útero materno e ficar lá, dizendo “Não, não, não”. Como toda negação, um atraso consciencial. Outra perda é agir no corpo inconscientemente, pela força do pensamento (criadora para o bem ou para mal, conforme nossa escolha), gerando um problema que pode se arrastar por séculos no “átomo permanente físico” (matriz do corpo na encarnação futura).

Texto recente de Luís F. Veríssimo fala da “superioridade da mulher”. Desde pequena ela brinca de boneca, pensa em amor, relacionamentos. Já o garoto se diverte com games violentos, competição e outras inclinações que embasam problemas no mundo. Cultura machista? Pode ser. Mas, como é que no reino animal os machos ganham as fêmeas e seu próprio território? Nossas tendências de “gênero” têm muito da herança animal. Como as fêmeas animais, as humanas defendem suas crias até contra o próprio macho.

Exceto para os que estão buscando atalhos evolutivos – por meio da meditação, do autoconhecimento – a humanidade ainda tem muito chão pela frente. Estamos pouco além da metade desse caminho, segundo Blavatsky[2] Quando superarmos as tendências instintivas da relação macho-fêmea, realizando também a meta da raça humana – que pode ser a Intuição, a Fraternidade Universal – o que acontecerá?

Jesus nos mostra isso, encarnando o Amor-Sabedoria – união da inteligência com o amor – sob o comando do poder inflexível da vontade. Um Homem-Deus.


[1] Membro da Sociedade Teosófica da Universidade Livre para a Consciência.
[2] BLAVATSKY, Helena P. “A Doutrina Secreta”, editora Pensamento.

Faz sentido alguém matar pela verdade?


Walter S. Barbosa (*)
Revivendo uma perplexidade antiga, no dia 11 de março deste ano um religioso americano queimou o Alcorão em praça pública, gerando protestos e mortes no Paquistão, contra os próprios paquistaneses.

Tendo se tornado a primeira república islâmica do mundo em março de 1956, o Paquistão é 96% muçulmano. Tal população rivaliza-se, porém, entre sunitas e xiitas (minoritários) por discordância sobre quem são os legítimos sucessores de Maomé.

Vitimando tais rixas seus próprios crentes, o mundo se perguntou sem entender nada: qual a ligação com o ato impensado do religioso americano? Difícil encontrar em termos lógicos, até porque a relação entre a violência e a lógica está mais nos domínios da psiquiatria. À loucura de um lado respondeu-se com outra, não restando dúvidas quanto à motivação bem terrena para o sangue derramado em nome de Alá.

Enfocando um reduto mais a oeste, a Palestina, Voltaire Schilling escreve: “Se a região, sob o ponto de vista econômico, material, foi sempre modestíssima, não tendo minas de ouro ou de mármore, nem sequer poços de petróleo (...), o mesmo não se aplica ao que ela representou na imaginação religiosa e sobrenatural dos homens. Não há, nem nunca houve, em mais de cinco mil anos de história, um território tão disputado e tão conflagrado como a área da Palestina e do antigo Reino de Israel”.

A questão religiosa, que deveria unir as pessoas, sempre esteve entre as mais freqüentes para conflitos, sendo incontáveis as campanhas guerreiras sob a figura do Cristo, que só tem por bandeira o amor. Tal contradição é uma identidade comum nas relações do homem com a busca da verdade, a partir do fato de que ela se encontra nele próprio, o que a torna o tesouro mais bem escondido do mundo.

Se a verdade não estiver dentro do homem não está em lugar algum porque, seja no homem ou fora dele, nada surge do nada. De outra forma seria um milagre, e este só ocorre na limitação de nosso juízo, vendo causas extraordinárias naquilo que desconhecemos. O universo é regido por leis imutáveis, como ocorre no fenômeno da eletricidade. Nisso é que se baseia todo o trabalho da Ciência.

Só assimilamos de fora o que já tem raiz em nosso âmago, num processo de gradativa “expansão” da verdade – ou seja, da consciência – como acontece na brotação da uma semente. Tudo está dentro dela, e vai surgindo na medida em que fatores externos, como a luz do sol e a água, exercem os estímulos certos.

Diante disso, a existência de religiões em si é um grande paradoxo, envolvendo edificações suntuosas, rituais, sacerdotes e outros intermediários para aquilo que, a rigor, não necessita de intermediação alguma. Porém, como poderia o homem sem ajuda externa descobrir a verdade que é ele mesmo? Não pode, ao menos enquanto seu aprendizado é tão dependente dos 5 sentidos, daquilo que ouve, daquilo que vê.

É pelos relacionamentos que o homem se conhece, usando a mente que está voltada para fora, examinando o mundo. Por meio desse espelho, e aprendendo a voltar-se para dentro, cada um pode encontrar o Self ou Deus Interno, sob a armadura do ego. Essa condição parece estar na essência do universo, onde o Criador – manifestado em seus múltiplos pedaços, como ensina o épico hindu Bhagavad-Gita – descobre a si mesmo em cada criatura. Pelo ponto de vista da criatura, é o que chamamos de "iluminação".

“A verdade é uma terra sem caminhos”


Walter S. Barbosa(*)
A frase acima foi pronunciada por Krishnamurti em 1929, ao dissolver a extensa organização que se criara em torno dele, rejeitando assim a possibilidade de vir a ser adorado como um Messias ou originar novos credos, apesar de ter atraído multidões como um autêntico instrutor espiritual, até sua morte aos 90 anos.

Segundo ele, “A crença é uma questão puramente individual, e não podemos nem devemos organizá-la. Se assim o fizermos, ela morrerá, ficará cristalizada; tornar-se-á um credo, uma seita, uma religião para ser imposta aos outros”.

Nessa questão, quando estabelecemos caminhos as possibilidades se reduzem, transformando aquilo em fonte de segurança, rigidez mental. Então, o caminho que deveria ser trilhado como lembrança ou direção, torna-se um rótulo, um patrimônio, restringindo o significado da vida espiritual que é viver em harmonia com toda a criação.

Porém, como poderia o homem descobrir a verdade que está em seu próprio interior sem a ajuda externa que as religiões propiciam, enquanto seu aprendizado é tão dependente daquilo que ouve, daquilo que vê? Em nome do próprio Krishnamurti organizações se criaram a fim de divulgar seus ensinamentos.
           
Tomé acreditou porque viu. “Benditos são aqueles que não viram e creram”, disse Jesus. Enquanto não somos capazes de aprender no silêncio da alma – por meio da auto-observação, da meditação – as religiões têm seu papel, avivando no mundo a lembrança do Eterno, chamemos a ele Deus ou Alá. O que torna as religiões fonte de desequilíbrio é se constituírem núcleos de poder, intitulando-se “únicas possuidoras da verdade” pela boca de seus representantes. Isso tem a ver com o aspecto humano, não com o Eterno.
           
Na filosofia esotérica, Deus – “o Ser supremo e inefável, incompreensível para a inteligência humana”, como define Helena Blavatsky – é a fonte da Vida Una, que nada exclui de si mesma, sendo por isso a matriz da verdade. Diferenças no sexo, cor da pele ou religião referem-se ao transitório homem externo. E a verdade? É aquilo que “é”, podendo apenas ser vivida. Como um raio de sol, o amor ou a paz, ninguém a possui. Tão só experimenta-se. Assim, testemunha o contrário aquele que em nome de seu credo (ou grau de consciência) diz ser dono da verdade, provocando divisões e dor.
           
Também, a não ser pela retidão que os Mestres de Sabedoria exemplificam, convidando-nos a segui-los, a verdade não precisa de defensores. Se puramente mental, a defesa torna-se negativa, prejudicando o que se defende. Avessa a pressões, a verdade atua no tempo próprio, às vezes como a descoberta que fazemos, indagando surpresos: “Como não vi isso antes?”. Aquilo sempre esteve ali. Freqüente na meditação, essa experiência surge também nos relacionamentos. É o espelho do mundo apontando o Ser.
           
Como “aquilo que é”, a verdade é o fato que só vemos com a mente nua, isenta de motivos. O motivo distorce o fato e mata a verdade, como também mata o amor. Sem motivos, a mente vê mas não julga, deixando agir os poderes intuitivos do coração, baseado em sentimento, não em palavras. Enquanto a mente polariza, discrimina – perdendo-se na diversidade – o coração agrega, relacionando causas e efeitos. Como do alto de um monte, aquele que está “além da mente” enxerga na planície o quase invisível traço de união que totaliza a diversidade no Uno.
           
Imprescindível para as operações diárias, a mente é parcial no tratamento com pessoas. Aí dividida, está sempre se agarrando, dizendo que a verdade é isto ou aquilo, em busca de supremacia. Já o coração prefere o silêncio ante o conflito, pois distingue a verdade em toda parte ao focar o permanente e não o transitório. Por essa razão, como ensina Ramana Maharshi, para os seres iluminados “tudo é real”.
           
Também segundo Maharshi, o coração – que indicamos ao dizer “eu”, colocando a mão sobre o peito – é a morada do Deus Interno: o templo a que podemos nos recolher a qualquer momento. Sem pagar taxa alguma, sem depender

Qual é o preço do seu ideal?


Walter S. Barbosa[1]

A um amigo francamente idealista, certa vez perguntei: “Qual é o preço do seu ideal?” Ele respondeu: “Meu ideal não tem preço”. Bonita resposta – pensei – porém rápida demais. À luz da observação mínima, tudo tem preço no Universo. Nossa meta mais elevada, a conquista do Ser, é obtida palmo a palmo durante milhões de anos, aperfeiçoando-se simultaneamente os corpos que nos servem desde o reino mineral, como ensina a filosofia esotérica. Mesmo a “graça do Guru” tem um preço nas condições requeridas ao discípulo.

Ideal é o “objeto de nossa mais alta aspiração intelectual, estética, espiritual, afetiva ou de ordem prática”, define o "Aurélio". Também pode ser o que “existe somente na idéia, imaginário, fantástico”. Onde se enquadra nosso ideal, nesse intervalo entre aspiração elevada e fantasia? Quanto ele consome, agora, de nossos recursos e atenção? É uma força autêntica, transformadora, ou é mero verniz, resumindo o dia-a-dia à vida instintiva herdada dos animais, com acréscimo do anseio de ganho material e psicológico inerente aos homens?

Em certo sentido, ter um ideal não é tão bom assim. O idealista pode encarnar alguém sempre focado em algo melhor a acontecer no futuro, enquanto “a vida só acontece no agora” segundo Eckhart Tolle[2]. Sendo esse o único tempo existente - vivido na ausência do medo e expectativa criados pelo tempo psicológico – por que alguém perderia esse tesouro à espera de algo improvável no amanhã? Para quem age assim, só restaria a infelicidade neste momento, convertido então em mero trampolim para o futuro?

A idéia da inutilidade – e até desvantagem dos ideais – pode reforçar a opção pelo imediatismo grosseiro, sendo comum o raciocínio de que “viver o agora” é intensificar o prazer com o mínimo de compromisso. Filho do mundo, o ego mergulha facilmente nesse jogo, mantendo-nos presos ao engano do descompromisso egoísta. Bem ou mal utilizada, a energia é uma só e toda ação é um emprego de energia, algo que também tem preço. A única ação isenta de compromisso é a que não busca recompensa, neutralizando o Carma na fonte.

Segundo Tolle, nutrir um ideal não significa necessariamente perder o foco do agora, como único espaço-tempo disponível para construir e vivenciar. Ao contrário – cientes da eterna mudança – captamos no agora a realidade que o universo oferece em cada instante, a coisa como ela “é”, ajudando a concretizar e possivelmente até melhorar nossos ideais.

Outra idéia comum é de que a “despreocupação” do agora – onde a mente relaxa e a intuição predomina – possa representar diminuição de nossos potenciais para resolver um problema. De novo ao contrário, essa é condição essencial para o que se chama “habilidade na ação”, colocando nossos recursos integralmente à disposição dela, sem distrações, sob cumplicidade também do relógio invisível da sincronicidade. Fiador de nossa capacidade intuitiva, só o coração é capaz de perceber esse tempo além do tempo.

“E qual é o seu ideal?” Pensei em fazer essa pergunta ao meu amigo, mas desisti. Se esse ideal tiver um sentido prático, ainda que espiritual, terá um preço (a espiritualidade real não está separada do dia-a-dia). Poderá ser também uma ficção como felicidade baseada em condições futuras, que podem acontecer ou não. Qualquer ideal pode ser vivido e gerar felicidade hoje. Este dia, além de completo em si, é a semente das possibilidades do amanhã.


[1]Membro da Sociedade Teosófica e da Universidade Livre para a Consciência.
[2] TOLLE, Eckhart. “O Poder do Agora”, editora Sextante.

Ubuntu: a vida além da competitividade


Walter S. Barbosa(*)
Freqüentemente a vida indígena nos é apresentada como o ideal comunitário na prática. Será porque são inocentes criaturas, alheias aos vícios da civilização, onde a disputa, o ardil e a cobiça são acrescentados ao instinto que herdamos do reino animal? Um pouco disso, talvez. Deve influenciar também o fato de obterem a sobrevivência na base do “Um por todos e todos por um”.

No Festival Mundial da Paz, em Florianópolis (2006), a jornalista e filósofa Lia Diskin relatou o caso de uma tribo na África chamada Ubuntu, como segue:

“Um antropólogo estava estudando os usos e costumes de determinada tribo e, quando terminou seu trabalho, teve que esperar pelo transporte que o levaria até o aeroporto de volta pra casa. Sobrava muito tempo, mas ele não queria catequizar os membros da tribo; então, propôs uma brincadeira para as crianças, que achou ser inofensiva. Comprou uma porção de doces e guloseimas na cidade, colocou tudo num cesto bem bonito, com belo laço de fita, e colocou debaixo de uma árvore. Aí chamou as crianças e combinou que quando ele dissesse “Já” deveriam sair correndo até o cesto. A que chegasse primeiro ganharia todos os doces que estavam lá dentro. As crianças se posicionaram na linha demarcatória que ele desenhou no chão e esperaram pelo sinal combinado. Quando ele disse “Já”, instantaneamente todas as crianças se deram as mãos e saíram correndo em direção à árvore com o cesto. Chegando lá, começaram a distribuir os doces entre si e comeram felizes”.
           
O que achou desse desfecho o antropólogo? À semelhança do que ocorre nas comunidades fechadas dos “homens brancos”, tudo que os nativos obtêm da mata, dos rios ou do cultivo embrionário da terra é repartido igualmente entre todos. A proximidade da floresta é garantia de que amanhã tem mais.  Ocorreria o mesmo comportamento em relação a algo especial que pudesse pertencer a apenas um? Lançada em 1980 e tendo por inspiração outra aldeia africana, a excelente comédia “Os deuses devem estar loucos” sugere a resposta:
           
Ao sobrevoar a tribo de bosquímanos onde morava Xixo (personagem central), no deserto do Kalahari, foi jogada do avião uma garrafa vazia. Os nativos logo descobriram para ela muitas utilidades – como socar alimentos e esticar peles – sendo considerada um presente dos deuses que cruzaram o céu. Mas o que ocorreu em seguida? Todos querendo usá-la ao mesmo tempo, começaram a brigar por sua posse, desaparecendo a antiga concórdia. O presente se tornou maldição, obrigando Xixo a ganhar o mundo com uma trouxinha nas costas, a fim de devolver a garrafa aos deuses.
           
Em nosso dia-a-dia, bombardeia-nos constantemente a propaganda de utilidades duvidosas, apresentadas como irresistíveis ofertas pelos “deuses” que alimentam o consumismo no mundo. Ao invés de proceder como Xixo – descartando o que gera discórdia ou inveja – competimos e nos sacrificamos para obtenção dessas “garrafas vazias”, fazendo disso a razão de viver. Acabamos morrendo, no entanto, para aquilo que importa: a beleza do esforço cooperativo, o amor e a paz.
           
Quanto ao antropólogo, surpreso com o final da competição proposta às crianças, perguntou-lhes por que tinham ido todas juntas se uma só poderia vencer a corrida, ganhando muito mais doces. Elas responderam: “Ubuntu, tio. Como uma de nós poderia ficar feliz se todas as outras estivessem tristes?”.
           
Segundo a narrativa, ubuntu significa “Sou quem sou porque somos todos nós!".
(*) Membro da Sociedade Teosófica e da Universidade Livre para a Consciência.

Sensação de viver: precisamos correr atrás dela?


Walter S. Barbosa[1]
Do ponto de vista do Yoga, vida é a natureza permanente do Ser. Ignorando isso, nos comportamos como se ela fosse algo a ser agarrado ou passível de se extinguir, justificando o medo da morte. Assinado por Airton Mendonça, o texto “A mente apaga registros duplicados” sugere que se deve fugir à rotina. Das experiências repetidas só fica o registro da primeira, que nos faz de fato viver. O resto submerge no automatismo, daí recomendando-se diversificar a atividade para que a sensação de vida não se apague.

“Um adulto médio tem entre 40 e 60 mil pensamentos por dia” diz Mendonça. Sendo impossível ao cérebro processar tal quantidade de pensamentos, a maior parte deles “é automatizada e não aparece no índice de eventos do dia e, portanto, quando você vive uma experiência pela primeira vez, ele dedica muitos recursos para compreender o que está acontecendo. É quando você se sente mais vivo”.

É palpável o sentimento de mais vida com experiências novas. Também, com o passar dos anos, pode ser difícil viver algo novo, fazendo a sensação de mesmice crescer no ritmo dos cabelos brancos. Conforme se tem dito, até coisas simples como mudar o relógio de pulso ou os móveis na sala pode melhorar esse quadro. Sob outra perspectiva, será que não podemos experimentar isso sem precisar correr atrás da vida?

Uma enxurrada de pensamentos chega ao cérebro continuamente, justificando Eckhart Tolle[2] classificar esse fato como tortura ou vício do pensamento na obra “O poder do Agora”, desde que vício é tudo que escapa ao nosso controle.

A corrente dos pensamentos é obra da atividade mental, ressuscitando muita coisa do subconsciente para reexame no painel da consciência, incluindo os pontos de apego impregnados na memória. Quanto sobra de atenção para o agora? Eventualmente, nada. O pôr do sol não tem brilho, o relacionamento se limita ao sexo. Passa em branco qualquer nota musical mais baixa que nosso barulho interno.

O carimbo de memória – ou seja, de passado – que a experiência nova recebe a torna velha instantaneamente, jogando-a sob o tapete da inconsciência. Algumas, porém, continuam fresquinhas por mais tempo. Por quê? A resposta pode estar no baú do inconsciente, cheio de medos, desejos e expectativas.

Emoções e pensamentos são manipulações de energias. Quando um desejo está prestes a realizar-se o coração dispara e a atenção fixa-se naquele ponto, quebrando o automatismo do viver diário numa experimentação do agora. É o que acontece também nas situações de risco, explicando a atração dos esportes perigosos e filmes de terror.

Daí perguntar-se: as pessoas habitualmente serenas estariam mortas? A santidade, que leva ao controle e mesmo extinção dos desejos, é uma proposta de redução da vida? O relato de tais indivíduos mostra o contrário. Em seus “yogasutras”, Patânjali diz que a sensação de existir aumenta à proporção que a consciência se alarga na direção do Ser, reduzindo o inconsciente. Com isso morre a dependência do passado, extinguindo-se também o medo, a sensação de isolamento e a carência resultante. A isso se chama paz.

Para o sábio Ramana Maharshi a paz é o bem supremo. De acordo com Tolle, trata-se de uma conquista “tão grande e profunda que tudo que não for paz desaparecerá nela, como se nunca tivesse existido”. Mesmo quando em pequenos “flashes” atingimos esse estado na meditação, sentimos a percepção da vida se dilatar e duvidamos da dor mental que há pouco nos afligia. Somente a experiência pessoal pode comprovar isso.

Sob o aspecto da permanência, a sensação de viver é algo bem mais profundo. Correr atrás dela só ajuda a afastá-la. Nossa fome real não é de agitação – que pode gerar o vício da adrenalina – mas sim fome de paz, de presença no agora, onde tudo se renova eternamente. “A vida só acontece no agora”, diz Tolle.


[1] Membro da Sociedade Teosófica e da Universidade Livre para a Consciência.
[2] TOLLE, Eckhart. “O Poder do Agora”, editora Sextante.